Praia do futuro é um filme para avisados. Avisados de que o
abandono é o fundamento da existência. Se Wagner Moura não tivesse feito o
fatídico Capitão Nascimento, certamente, Praia do futuro não teria a
repercussão que está tendo. Posto que a maioria dos comentários e indignações
versa no entorno das possibilidades da sexualidade do tal capitão.
Dentro do quadro da filmografia de Karim Aïnouz, diretor de
Madame Satã (um dos melhores filmes já feitos no Brasil), Praia do futuro é um
bom filme. Estende as pesquisas de câmera feitas por Karim em O céu de Suely e
desdobra as tópicas de O abismo prateado, por exemplo.
Perturbados com as cenas de tensão sexual entre as
personagens de Wagner Moura e Clemens Schick, muitos espectadores perdem a
oportunidade de ver em cena a doçura e a força do uso do abandono como
procedimento fílmico. A câmera ora parece está abandonada, ora parece abandonar
as personagens, misturando sujeito e objeto, forma e conteúdo.
Sendo "criatura do que vejo", como anotou Octavio
Paz, a insalubridade da praia do futuro - lugar de bênção e maldição - quer
mesmo é impregnar-se no espectador. Causar desconforto no confronto. Karim
coroa tal procedimento ao fechar o filme com o título invertido. Ou seja, a
ideia não é olhar a praia do futuro de-fora, como um-outro apartado de-mim, mas
de-dentro, como um se, uma possibilidade de ser.
Falei em tensão. Sim, há mais tensão que tesão na relação
entre Donato e Konrad: O macho cearense e o macho alemão. Onde o desejo? A
língua? A macheza? A morte? O mar? O sol? O frio? O silêncio. É no silêncio e
no interdito, ou no não-dito, que as personagens de Karim vivem. Do
"aquaman" que foge de seu lugar para viver aquilo que ele é (um
salva-vidas em busca do próprio salvamento: "aqui nessa cidade subaquática
eu não preciso mergulhar para me sentir livre", diz) ao irmão pródigo que
constrói a vida tendo a mágoa como alicerce. Abandonar não é esquecer. Lidar
com tais diferenças é o que fazem as personagens serem como são. E é preciso
anotar que sabemos muito pouco sobre cada uma delas. O filme exige a montagem
de um quebra cabeça e na maioria das vezes as peças não se encaixam. Para o bem
e para o mal do próprio filme.
Para mim, Praia do futuro é um filme sobre Ayrton, vivido
pelo brilhante Jesuíta Barbosa. Tal e qual o Aquiles homérico, que passa a
maior parte da narrativa ausente da Ilíada, Ayrton é o motor do filme. Tudo o
que acontece, principalmente nas frestas não exibidas da história de Donato, é
uma preparação para o retorno da personagem de Jesuíta: é a odisseia particular
desse o que alimenta todas as lutas corporais vividas pelo melancólico irmão Donato.
Cada qual experimenta o medo de se afogar de modo singular, mas complementar. E
isso é recolhido na longa sequência final.
Os ângulos do triângulo amoroso criado por Karim não
convergem, assim como as cenas sobrepostas, assim como o tempo que escorre longe
dos olhos do espectador. Por fim, é na beleza da fotografia - no contraponto entre a
luz brilhante do trópico, quando o diretor faz uma citação à obra de Alair Gomes, e a
luz fechada da Alemanha, que influencia nos corpos e nas ações das personagens -
que Karim encontra a cor exata para exibir gente viva, desolada e brilhando na
noite. Se "o futuro já começou", resta saber quando viver o presente.
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