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terça-feira, julho 30, 2013

O testamento de Maria

"Meu corpo é feito tanto de sangue e ossos quanto de memória", p 10.
Sou leitor da literatura ficcional e ensaística de Colm Tóibín há tempos. Creio poder constatar: "O testamento de Maria" é um livro primoroso, ápice de requinte, delicadeza e "olho livre", de uma rara condensação entre forma e conteúdo, amoral - naquilo que isso implica destemor e vontade. Virei a madrugada lendo, sem parar. E ao terminar, quantos pensamentos!
No mais, as palavras de Edmund White traduzem bem o que senti: "Este é um livro curto, mas denso como um diamante. É tão trágico quanto uma Pietá espanhola, mas completamente herético. Tóibín consegue preservar toda a dignidade de Maria sem endossar os mitos que se acumularam em torno dela".

sábado, julho 13, 2013

Los Amantes Pasajeros

Para quem, como eu, acompanha a "linha evolutiva" da filmografia de Pedro Almodovar, "Los Amantes Pasajeros" soa estranho à primeira vista. Acho mesmo que Almodovar tinha uma boa ideia mas a perdeu ao longo da história. A ausência de um núcleo duro direcionando o roteiro rompe com as tramas extremamente bem urdidas presentes nos filmes mas recentes do cineasta.
Porém, distanciando-se, em segunda mirada, podemos perceber que os tipos tão bem criados e tratados por Almodovar para causar "pane no sistema" estão todos ali: nas filigranas - do texto ácido às situações aparentemente soltas.
Por exemplo, em "Los Amantes Pasajeros" Almodovar escamoteia a sátira à crise econômica da Espanha na absurdidade das ações das personagens. Ora, o avião não está indo para o México por acaso. Também não é à toa que os passageiros da classe econômica são dopados com sonífero, enquanto os da classe executiva são excitados e entretidos pelos comissários de bordo. Nem a popização da religião e a estetização da sexualidade se misturam por mero preciosismo fílmico. É o Almodovar de sempre. Talvez voltando ao começo para indicar retornos e recuos necessários à afirmação da continuidade.
"Los Amantes Pasajeros" é, talvez, o filme mais queer/camp/gay do Almodovar; rende boas risadas, bons momentos de auto-críticas e isso é bom demais.

segunda-feira, julho 01, 2013

Maracanã: de aldeia a ilha



(...) Belo Monte... Pinheirinho... Terena... Munduruku... Kaiowá... Aldeia Maracanã... Maré... Orquestrada pelos governos, sob os aplausos de quem se esforça para manter a invisibilidade das culturas indígenas, a polícia reafirmou sua truculência ao enxotar os índios que ocupavam a Aldeia Maracanã, no entorno do famoso estádio de futebol. Enquanto uma parte emparedava manifestantes e imprensa, outra parte da polícia expulsava de um prédio público um grupo de índios de várias etnias que ali se reuniram e moravam há tempos. Voltei para casa transtornado, tamanha a minha impotência diante do violento absurdo. 1500? Não, 2013.
Coniventes, alguns perguntavam: "Por que as regras da cidade não podem ser aplicadas aos índios?". Em contrapartida, outras perguntas me vinham à mente: "o que se odeia no índio"? O que se odeia nas culturas africanas? Era o Maracanã em pleno processo de "civilização", desta vez, tendo como colonizadora a FIFA, com seus padrões higienistas.
Não tenho o menor interesse por jogo de futebol, mas entendo, respeito e admiro a beleza de quem vibra, torce, tem um time para chamar de seu e usa o futebol como escape contra o cotidiano vazio. Voltando de SP, sobrevoo o Maracanã iluminado, "objeto-sim resplandecente", e me emociono. Isso também é Brasil. Morando na esquina do estádio, acompanhei, dia após dia, as regras de assepsia sendo implantadas. É o preço que se paga por sediar a Copa do Mundo. É?
O elogio cego dos civilizados embasbacados com a luxuosidade do estádio restaurado a altos custos não tardou para ser contraposto à realidade fora do Maracanã, da ilha. E quem ousasse protestar era violentamente reprimido, sob a autorização dos jornalões do país. Dizendo "não à repressão", grande parte da população se agitou e, finalmente, legitimou os manifestos levantando bandeiras das mais diversas vontades. O enxame difuso tomou as ruas.
"Pacíficas", "ordeiras" e "fotogênicas" para os padrões de nossa TV, enquanto o jogo não começava, as manifestações eram válidas. Mas bastou a bola rolar em campo, bastou a TV voltar todos os seus olhos para os pés dos jogadores e os confrontos recomeçavam com a polícia "dispersando" a multidão inconformada, limpando as ruas para assegurar a saída de quem pagou para assistir ao jogo.
Eis a potencialização do sonhar ilhas, as esferas protetoras do sonho civilizatório construtor da ponte que "me" separa do "outro". Deslumbrados com as ofertas paradisíacas da ilha, os alunos de uma colega minha de profissão perguntam se "favelado é cidadão". 1500? Não, 2013. Fora da ilha, outros (adultos) deslumbrados perguntam por que não tirar o direito de voto daqueles que recebem o "bolsa família". E as remoções compulsórias se espalham pela cidade. Isso também é Brasil.
Na "grande final", o narrador esportivo diz na TV que o Maracanã agora "é de primeiro mundo", reafirmando nosso "complexo de colonizado", tão disseminado no imaginário coletivo pelas recorrentes comparações midiáticas entre nós e a Europa, ou os EUA. Dentro da ilha, Fred faz um belo e brasileiro gol macunaímico, de oportunidade. Fora da ilha, a fumaça de gás de pimenta empesteia o ar. Dentro da ilha, brasileiros que nem eu, ora dançarinos, protestam em plena festa da FIFA, erguem cartazes, ora, a cada gol, um jogador corre para o abraço do torcedor. Antropofagicamente, sujam a festa asséptica que a FIFA quer impor. Roubam a festa para os de fora da ilha.
Dentro da ilha: "a grandeza épica de um povo em formação [cantando o Hino Nacional] nos atrai, nos deslumbra e estimula", no entanto, os rostos em close não negam a limpeza étnica, a acentuação das diferenças entre classes. Fora da ilha: um sistema de mobilidade urbana caduco e ineficiente. E uma ação incompreensível, porém, reflexo de nós mesmos, da polícia no Complexo da Maré: só para mostrar "como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". Fora da ilha, a lenta luta diária é o regime.
Moradores da Rocinha e do Vidigal nos lembram de que a "a polícia que joga bomba de borracha no asfalto é a mesma que invade a favela com balas letais". Na TV, o consultor de segurança dá a dica, confirmando a atrocidade: "Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana".
O que faremos com a ilha quando a FIFA devolvê-la de volta? Símbolo do país, o Maracanã-ilha se separou do Brasil-continente, à revelia deste. Fora da ilha, à margem do perímetro de 3 km desenhado pela FIFA, os índios da Aldeia Maracanã continuam com a bandeira em punho pela paz sem fronteiras. E as perguntas vêm: É tão difícil entender que o Complexo-da-Maré e o Complexo-do-Maracanã não são partes de países distintos? Por que o Caveirão que aterroriza os moradores das favelas e periferias vira "atração turística" quando instalado como forma de intimidação nas proximidades do estádio? Por que é tão difícil entender que a posição afirmativa dos índios da Aldeia Maracanã é emblema da resistência contra a violência diária perpetrada por políticos eleitos com o nosso voto? O voto, este mais importante instrumento de luta que temos, além do corpo e da voz – da vida.