Pesquisar neste blog

terça-feira, novembro 29, 2011

Obituário ideal

O corpo destrinchado e autopsiado na TV, os vários close-ups no rosto do artista, do jogador, do indivíduo comum em busca da lágrima exata, os muitos apetrechos (externos) necessários ao gozo sexual e a vontade de ser curtido e seguido por um grande número de "amigos" são alguns sintomas de nosso tempo.
Radicalmente clara, verdadeira e, portanto, asséptica, a contemporaneidade engendra artifícios para burlar a anestesia do ânima que ela mesmo gera e alimenta.
O desejo, a pulsão, aquilo que nos move têm estado tão espalhado entre badulaques confortáveis e seguros que nossa especificidade tecnológica oferece que não sabemos mais o que de fato desejamos: o que nos faz rir ou chorar.
E é sobre esta disseminação, excesso, dispêndio, proliferação que vivem o sensasionalismo e o controle mercadológico e midiático. Ambos sempre a querer mostrar - com sucesso - onde está o desejo, limitando nossa capacidade de subjetivação.
Sempre descartável, frágil e escorregadia, em estado de espera-pelo-seguinte, sem ao menos dar tempo de viver o atual, temos vivido a exuberância do luxo (excesso) da pseudo fisicalidade.
Porque insensíveis, estamos a mercê de qualquer alma penada que nos ofereça uma fresta de amor, de calor, de medo, de fogo no motor (de riso e choro) da existência.
Feita show, a realidade resulta sendo mais-ou-menos o que nós queremos: finge suprir o instante e abri-nos à busca do gesto ideal, sustentando a fragmentação conveniente do desejo.
É sobre tais questões que a peça Obituário ideal trata: nossa exposição complacente e passiva a uma realidade meticulosamente montada.
Maria Maya e Rodrigo Nogueira representam um casal cúmplice na imersão na banalidade da violência e da intimidade - dos outros.
Atravessados excessivamente pelo exterior - locuções jornalísticas, jornais impressos - o texto (Rodrigo Nogueira) e a encenação de Obituário ideal sublinham a ação do casal que busca em velórios de desconhecidos o "choro grave", real - algo que se sinta, que ultrapasse a pele.
Impregnadas e movidas pelo exterior, as personagens, em um lance de espelho com a plateia, rejeita qualquer olhar para dentro. As investidas de perspectivação da vida feitas pontualmente pelo marido se diluem na incomunicabilidade. Assim como o amor e a dor.
Apático à brutalidade, porque exausto à repetição dela, o casal vai da incomunicação à afinidade, radicais.
O cenário de Aurora dos Campos e os figurinos de Gabriela Campos merecem destaque por emoldurarem com eficácia e beleza a vontade da peça em dizer que tais sentimentalidades (ou a ausência delas) são atemporais.
Com direção de Thiare Maia e Rodrigo Nogueira, Obituário ideal e seu embaralhamento de tempos, situações e desejos, tão caros ao público contemporâneo, é uma mirada risonha e corrosiva no espelho.

sexta-feira, novembro 25, 2011

Judy Garland - o fim do arco-íris

O musical Judy Garland - o fim do arco-íris trata do processo de apagamento de uma estrela. Uma estrela que já em O Mágico de Oz (aos 17 anos) dependia de "remedinhos" para dormir, acordar, cantar. Uma estrela que quer para além do possível brilhar até o último instante. E brilha.
"Não há nada pior do que você saber que pode fazer (encontrar a nota certa) e não conseguir", reconhece.
Talvez para justificar o título, dado pelo autor do texto Peter Quilter, a conhecida canção de O Mágico de Oz atravessa a peça como um fantasma a perturbar Judy e plateia.
Mas nem só de "Over the rainbow" vive a estrela. E são nos momentos de palco que o brilho de Judy se intensifica: seja no excesso de tesão, de alongamentos vocálicos e vibratos, seja na força de sua presença física luminosa e ácida, Judy transmuta-se em um assum-preto-star.
O cenário tem a função exata de sugerir a relação íntima entre o público e o privado - no lugar onde cada um é afetado pelo outro - nas ações da personagem diante da vida, da dependência de drogas, da arte.
O piano é o elo entre os dois ambientes (o palco e o quarto de hotel) tão comuns quanto estranhos à estrela ora lúcida, ora confusa orgânica e mentalmente. Cambiante dos humores, sendo "a volta por cima" de sempre.
E é neste trânsito que surge o trabalho cênico impactante de Claudia Netto no papel título. Caricata e realista, corrosiva e frágil, engraçada e mordaz, trêmula e segura, encurvada e ereta, tudo junto e ao mesmo tempo, Claudia permite à plateia a recepção de toda a potência da tempestade solar que Judy era. Ou ainda é, para alguns.
Aliás, outro mérito de Judy Garland - o fim do arco-íris é abordar a relação íntima entre a construção e manutenção de uma diva (o mito e a lenda) e a cultura camp. Basta recolher os significantes Garland absorvidos na montagem de uma figura como Nany People, por exemplo.
Não fica dúvida à importância que cada parte exerce na outra: "Eu poderia vomitar no colo de uma bicha que isso seria uma honra para ela", diz Judy. "Nós bichas enchemos o teatro para vê-la", diz Antony (Gracindo Júnior), seu pianista e fiel escudeiro contra entidades como Mickey Deans (Igor Rickli), noivo de Judy, por exemplo.
Elogiar Charles Möeller e Claudio Botelho já virou clichê. Porém, diante de tantas lascas de mediocridade em arte espalhadas por aí, reafirmar o cuidado e a paixão que os dois imprimem em tudo que fazem nunca é bastante.
Judy Garland - o fim do arco-íris não é biografia, mas uma pintura íntima daquilo que foram os últimos tempos da estrela, sua última temporada, seus derradeiros dias. Cores, luzes e sons a serviço da permanência da lenda-viva.

quinta-feira, novembro 24, 2011

O Filho eterno

A tradução intersemiótica, a adaptação de uma linguagem artístico-estética em outra não é tarefa fácil. Afinal, cada linguagem tem suas especificidades, é preciso respeitá-las, abrir um diálogo entre elas e, principalmente, traí-las.
Adaptar não é simplesmente transpor a prosa literária in totum ao palco, por exemplo. É mais: é descolar-se do objeto inspirador, traí-lo para que ele renasça e permaneça como sempre foi. É a promoção de um retorno em diferença.
A peça O Filho eterno é mais do que uma simples adaptação do livro de mesmo nome de Cristovão Tezza. O trabalho de Bruno Lara Resende, ao manter os núcleos-duros do texto literário, mas radicalizando-os no nível do convite ao esforço intelectual do espectador, já que o livro transmutou-se em um monólogo, é outro objeto.
Mantendo as vozes do texto literário, agora concentradas nas entoações do ator sozinho em cena, O Filho eterno, com aquilo que poderíamos redefinir como monólogo interno em voz alta rompe sua ligação com o outro O Filho eterno, o livro.
Agora são dois. Diferentes. Ligados pela memória do espectador-leitor, mas separados pela competência estética. Um dignifica e fortalece o outro: cada qual em seu campo de
presença.
E está no corpo e na voz de Charles Fricks a concretização do gesto adaptador. Consciente de seus recursos cênicos e das exigências do texto teatral, o ator põe as personagens para dançar ao ritmo do fluxo alucinado dos pensamentos de um pai-escritor diante do nascimento de Felipe - o filho e sua trissomia.
Sob a direção de Daniel Herz, que sabe figurativizar com exatidão texto e marcação, o jogo lúdico entre a primeira e a terceira pessoas do discurso, surge em cena o desenho de um sujeito mais filho do que pai. Que progressivamente aprende mais do que ensina. Ou melhor, equaliza ensino e aprendizagem na certeza de que "nenhum dos dois, pai e filho, tem a mínima ideia de como vai acabar. E isso é muito bom".
Politicamente incorreto e honesto o pai observa e participa - vivendo e aprendendo a jogar - da construção da subjetivação do filho, ao mesmo tempo em que reconstrói a própria subjetividade.
O Filho eterno é teatro que convida à revisão daquilo que tratamos sob os escudos da vergonha e da piedade.

quarta-feira, novembro 23, 2011

4 faces do amor

Em tempos de virtualidade dos afetos, de pseudo trocas de intimidades, de amores líquidos, quase nada duráveis, a peça 4 faces do amor canta que só o amor é real. "O amor é meu país", dirão as personagens.
Seja qual for a forma - e toda forma vale a pena - em que o amor se manifesta, é na razão de ser das parcerias que o amor se realiza. E, acima de tudo, é na vontade de ser que o amor é. Sem fórmulas. Mas em um exercício diário doloroso e gozoso. Afinal, "amar se aprende amando". E cada relação é única, plural e incopiável, está além da massificação dos manuais.
Para além das brigas e alegrias, absorvendo os pólos positivo e negativo, se há amor, há o equilíbrio das potências, a vontade de estar, de permanecer, de durar, de recomeçar.
Em 4 faces do amor, o texto, as letras das canções de Ivan Lins e as melodias encontram uma equalização raríssima em musicais.
Se normalmente as canções entram como comentários ou um show a parte - seja para mostrar o virtuosismo do ator/cantor, seja para enfatizar a grandiloquência cênica, resultando em intervenção fake -, em 4 faces do amor, há uma organicidade realmente surpreendente: como se aquilo não pudesse ser dito de outra forma senão cantado, ou falado, daquele modo.
E aqui merecem destaques tanto o texto de Eduardo Bakr, dono de um labor apaixonado e lúcido sobre o material cancional utilizado, quanto a direção musical de Liliane Secco.
Sem esquecer a direção geral de Tadeu Aguiar, responsável pelas marcações exatas: promotoras do jogo cênico e do embaralhamento saboroso das possibilidades do amor - o mesmo em várias faces.
O texto cria vozes plurais para o amor, permitindo a identificação do espectador com alguma das vozes, ao mesmo tempo em que efetua o deslizamento de uma voz a outra aprofundando o multifacetamento, a palheta infinita de cores, do afeto.
Inícios, meios, fins e recomeços atravessam a história, as canções, transbordam nas interpretações dos atores em cena e enchem o palco de festa, tesão e desejo de enfrentar o trabalho gostoso (agridoce) que só o amor - o desejo de colar para somar - pode proporcionar.
Há uma intimidade tão intensa entre as personagens, vinda do trabalho excepcional de Gottsha, Maurício Baduh, Adriana Quadros e Cristiano Gualda, que a plateia não pode ter outra reação senão o aplauso caloroso ao fim de cada ato, de cada cena.
Por falar em intimidade, talvez seja este outro ponto forte da peça. Luz, cenário, atuações, canções, texto, música, tudo conspira para que a emoção venha da variação dos sentimentos apresentados. Sem pieguismo, longe disso, com humor e tesão, a ênfase está no todo estético-amoroso.
Ceder ou não? Libertador e senhor, o amor está acima de rótulos, regras e leis. E em cena cada personagem é amor da cabeça aos pés: sonha e arde. Amar um alguém diferente por dia pode ser tão excitante quanto amar um mesmo alguém (com passado, problemas e saberes) por vários dias.
4 faces do amor é uma ode à vida, ao teatro. Uma oportuna possibilidade de discussão dos sentimentos contemporâneos.
4 faces do amor é a grande surpresa deste final de 2011. Um espetáculo imperdível.

terça-feira, novembro 22, 2011

Emilinha e Marlene - as rainhas do rádio

"Quem sabe faz ao vivo", diz o apresentador de TV, em uma referência aos bons cantores, àqueles que têm no palco o mesmo desempenho que o público encontra no disco.
Em tempos de manipuladores vocais, e quando o show em si parece valer mais do que a voz do cantor, ao mesmo tempo em que as apresentações ao vivo parecem ser o melhor meio de sobrevivência frente à crise do produto CD, a competência vocal volta com força decisiva: um retorno insuspeitável ao pré-gravado.
Claro, um retorno-em-diferença, pois ninguém precisa mais se dividir entre um artista ou outro - a emergência de várias vozes promoveu o espaço para o plural nos gostos auditivos. E os desafinados também têm um coração.
Em um momento não muito distante, o valor dado ao cantor vinha quase exclusivamente da avaliação que o público fazia de sua performance. Sim, porque até os programas de rádio eram feitos ao vivo.
Para alguém menos familiarizado com a história de nosso cancioneiro, parece inimaginável que artistas como Emilinha e Marlene tenham conseguido seduzir tantos fãs num Brasil pré-youtube para facilitar a divulgação do trabalho.
O poder sirênico avassalador destas duas rainhas podem ser vivido por todo aquele que for assistir à peça Emilinha e Marlene - as rainhas do rádio.
Dignas de suas personagens, é preciso destacar os trabalhos corporal e vocal de Solange Badim (Marlene) e Vanessa Gerbelli (Emilinha). Bem como de todo o elenco.
Sob a direção correta de Antonio De Bonis, com o tesão posto naquilo que fazem, as atrizes honram duas de nossas maiores cantoras.
Temos uma trajetória cancional singular e superior, cheia de personagens carentes de ser recuperados do campo do esquecimento coletivo. Emilinha e Marlene - as rainhas do rádio é um prazer à memória, um luxo à vontade de manter acesa a chama de nossa história.
Com uma trilha solar, dirigida por Marcelo Alonso Neves, o espetáculo investe no bom humor e na ironia, vindos do texto de Thereza Falcão e Julio Fischer, assim como na aproximação rápida com a memória afetiva do público para reluzir seu ouro: as duas homenageadas.
Assistir a Emilinha e Marlene - as rainhas do rádio é (re)conhecer um pouco mais do Brasil.

domingo, novembro 20, 2011

Les amours imaginaires

"Gosto de gente" tem sido a resposta muderna dada com frequência por algumas pessoas quando são questionadas quanto às suas predileções sexo-afetivas.
Se por um lado podemos interpretar tal atitude como um sintoma contemporâneo de negar consciente e radicalmente os rótulos limitadores quando o assunto é a múltipla possibilidade do desejo, por outro lado isso alerta a nossa própria incompetência ao lidar com o desejo, com a libido.
Quando vale muito mais ser "seguido" e "curtido" por 1000 pessoas do que ter contato íntimo com 1, é preciso repensar as qualidades das relações.
O fato é que, ao que tudo indica, não temos sabido lidar com a virtualidade do sexo, do amor em tempos de reality shows (shows da realidade).
Frágeis e descartáveis - eles não sobrevivem à primeira divergência, afinal, haverá mais presumíveis e bacanas 999 pessoas para suprir nossas carências -, os amores líquidos intensificam a manutenção da nossa infância emocional.
E o mundo tem conspirado para que sintamo-nos mimados o tempo todo: a dor está fora do jogo. Assim como a incompatibilidade de gênios.
Todas estas questões e tantas outras são tematizadas com estética visual superiormente interessante a qualquer descrição que eu possa fazer aqui no filme Les amours imaginaires, de Xavier Dolan.
Como não poderia deixar de ser, destaco a escolha de "Bang bang", cantada com a singularidade da voz da Dalida, tanto como moldura de cenas decisivas, quanto como a síntese das personalidades frágeis, inseguras, carentes e infantis - por trás das máscaras de segurança - de Marie (Monia Chokri) e de Francis (o próprio Xavier Dolan) em relação às emoções que eles direcionam para o indiferente (anestesiado emocionalmente) Nicolas (Niels Schneider).
"Bang Bang / e resto cui / Bang Bang / a piangere / Bang Bang / hai vinto tu / Bang Bang / il cuore non l'ho più", diz o sujeito da canção.
Marie e Francis são o duplo, o espelho e a prisma deles mesmos e das disputas por atenção, brilho e forjada lucidez do indivíduo contemporâneo.

sábado, novembro 05, 2011

Pelo amor de amar

No filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar, a jovem Norma (Ana Mena), involuntariamente (brincando distraída no jardim de casa), cantando os versos de "Pelo amor de amar", de José Toledo e Jean Manzon, desperta a mãe marcada pelo incêndio que lhe desfigurou o corpo.
Em uma cena entre as melhores construídas pelo cinema, a filha é a sereia da mãe: jogo de papéis que irá marcar toda a trama.
A voz da pequena Norma - suas inflexões infantis, seu esforço ingênuo para cantar em português - entoando os versos da canção - "O coração do mundo canta no meu coração / Meus pés seguem sozinhos a dançar / Eu não conheço em mim a grande dor da solidão / Se em tudo eu encontro o dom de amar" - oferece o sopro de vida que Gal necessita.
Porém, ao mesmo tempo, também direciona a mãe à luz, a ver refletida a sua aparência aterradora, ao fim trágico e irrefutável. A voz do coração da criança é o veneno-remédio de Gal.
Como é possível perceber, em A pele que habito, a canção "Pelo amor de amar" tem presença definidora. E recebe, mais adiante, uma interpretação comovente, apaixonada e singular, em espanhol (“Por el amor de amar”), de Concha Buika.
Resgatada do repertório de Ellen de Lima - cantora mais conhecida por ter gravado a "Canção das misses" -, "Pelo amor de amar" fez parte da trilha do filme Os bandeirantes (1960) de Marcel Camus.
Devido a dificuldade de encontrar letra e registro desta canção na voz de Ellen de Lima, disponibilizo-os aqui:




Pelo amor de amar
(José Toledo / Jean Manzon)

Quero a luz do sol
Quero o azul do céu a cair no mar
Quero o mar sem fim
Para não ter fim este mal de amar

Como a flor feliz que ver nascer a flor
Só nasci para viver no solo vento
Quem me quer amor
Tem de amar também meu amor de amar

O coração do mundo canta no meu coração
Meus pés seguem sozinhos a dançar
Eu não conheço em mim a grande dor da solidão
Se em tudo eu encontro o dom de amar

Pelo amor de amar
Quero ser a luz que sorrir na flor
Pelo dom de amar
Quero ser a flor que se deu de amor