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quinta-feira, setembro 24, 2009

sábado, setembro 19, 2009

Não Madame, não Satã

João Francisco dos Santos, o Madame Satã, mito da boemia carioca, é uma das figuras mais complexas e significativas para se pensar a sociedade brasileira. Temido e consagrado, ele colocou em xeque a moral de um longo período que o país viveu sob ditadura. Infelizmente não é este o Madame Satã que nos é apresentado na peça que leva seu nome, dirigida por Marcelo de Barros, em cartaz no Teatro do Sesi, no Rio de Janeiro. Logo na entrada do teatro, uma exposição com objetos pessoais do "homenageado", de precária comunicação visual (não há legendas em nenhuma foto ou objeto) e o mau uso das peças, já parece um prenúncio do que se vai assistir.
O espetáculo "Madame Satã", da Companhia Teatro Arte Dramática, estimula o preconceito e reforça a falta de informação sobre a figura pretensamente representada. As afetadas e caricatas atuações, que beiram o ridículo e desconstroem a força do mito, e as personagens criadas de forma rasa e pouco evocativa, decepcionam o espectador que procura algo mais do que uma sucessão de termos chulos que, gritados com insistência em certas cenas, conseguem adesão de apenas parte da plateia que ainda acredita neste expediente como forma de divertimento.
Há cenas constrangedoras, mal conduzidas e longas, esgarçando qualquer sentido contextual, e atores que não sabem o texto, assinado pelo diretor. Um texto, diga-se de passagem, construído sobre aspectos e marcas que se repetem a exaustão, buscando o riso fácil do público e eliminando qualquer possibilidade dramática.
Os movimentos e a (quase) inexistência de objetos de cena parecem pensados para uma peça de formatura de curso teatral, no pior sentido que isso possa ter. Somado a isso, a coreografia, se é que podemos chamar assim, dos dois narradores é primária, com gestos de falsa e desnecessária eloquência.A filipeta diz que o espetáculo foi montado em Paris, pela Universidade de Nice e, por mais inacreditável que possa parecer, já foi assistido por mais de 50 mil pessoas. Acreditamos que seja pelo exotismo de uma "macumba para turista ver", como rejeitava Oswald de Andrade, ao se referir à arte brasileira. Tudo no "espetáculo" parece propositadamente estimular um certo prazer sarcástico e preconceituoso de quem quer, efetivamente, manter-se alheio às discussões sobre preconceito e respeito à diferença.
O pernambucano Madame Satã não merecia isso.

Texto publicado no Jornal A União 19/09/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Exposição Argentina Hoy - Irretocável mostra do que de melhor há na contemporânea arte feita na Argentina. Até 22/11 no CCBB.
= Filme Up - Certamente um dos melhores filmes do ano. A comunicação visual é incrível e a personagens são muito bem construídas. A metáfora de "carregar a casa nas costas" versus a decisão de se libertar do "peso" do passado é trabalhada com texto impecável.
= Filme Drag me to Hell - É um bom suspense "classicão", não deve agradar ao público acostumado aos (d)efeitos dos filmes do gênero.
= Dança Appris par corps - A Cie. Unloup pour l'homme apresenta uma performance suave e agressiva nos momentos exatos. A relação quase simbiótica dos dois performans é decisiva na leveza dos movimentos que estão muito além dos gestos pesados e sem introspecção que costumeiramente se vê em espetáculos em que a força física é exigida.
= Show Pros que estão em casa (Tony Platão) - O setlist do show é muito bem montado, possibilitando Platão mostrar as várias competências de sua voz.
= Teatro Nervo craniano zero - É tudo tão canastrão que chega a ser divertido.
= Livro O filho da mãe (Bernardo Carvalho) - O cruzamento das narrativas, dos sentimentos, das perdas e conquistas, do verossímel ou não continua sendo o mote do autor, que agora usa a metáfora das ilhas (esferas) afetivas para construir sua história.
= Livro Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (Herom Vargas) - Pesquisa e boa leitura sobre a mistura antropofágica efetivada pelo movimento MangueBeat.

terça-feira, setembro 08, 2009

Orando sobre patins

No período escravocrata, no âmbito da religião, conviviam, não sem algum atrito, a ideologia do senhor e a do escravo. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro, como estudou Gilberto Freyre.
Nasciam então religiões miscigenadas como a Umbanda, com o São Jorge, católico, relacionado ao orixá Ogum, e Nossa Senhora, relacionada à Iemanjá, apontando para a transvaloração da estrutura simbólica do signo cultural trazido pelos escravos.

A canção "Feitiço" (Caetano Veloso) é um elemento importante para se pensar o sincretismo brasileiro. Ela é, de fato, uma repetição com distância crítica do samba "Feitiço da Vila", de Noel Rosa. O "Feitiço" de Caetano refrata a ideia da letra de Noel visto que, ao invés de ser um "feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém", o "feitiço" tem farofa, tem vela e tem vintém. E inclui ainda as periferias e os excluídos sociais, saudando o movimento Manguebeat, a comunidade de Vigário Geral, o funk e o Candeal de Carlinhos Brown, proporcionando um "abraço acolhedor" nas manifestações culturais dos guetos.
Já na primeira estrofe da letra, percebemos a desconstrução realizada por Caetano no modelo de Noel Rosa, para quem, acreditamos, devido à visão marginal que o samba carregava à época, era preciso retirar e "limpar" os elementos típicos das crenças trazidas: "farofa", "vela" e "vintém".
Como sabemos, o samba em sua gênese é híbrido, sincrético, miscigenado. Para Antônio Risério: "Nossa população nunca foi obrigada a amputar antepassados. É majoritariamente mestiça. E se reconhece como tal". É assim que em "Feitiço" há um jogo de palavras que se "devoram" e demonstra a antropofagia cultural em que Zabé - redução amorosa para Isabel, a princesa - devora Zumbi, maior referência de comandante dos negros, no Brasil. E vice-versa.
Obviamente, quando Caetano faz releituras do cânone, não se trata de superação. O fato é que, em tempos de discursos racialistas é bom refletir, por exemplo, que, se a umbanda é um "branqueamento" do candomblé, também é o "enegrecimento" do catolicismo, resultando, por contrapartida, em algo distinto dos dois. "Deus está solto".

Texto publicado no Jornal A União em 05/09/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Mostra Saint-Étienne Cité du Design - Objetos criados tendo como foco a sustentabilidade do planeta. Até 27/09 CCBB.
= Mostra Casa Cor - O requinte da Casa Cor deste ano homenageia Burle Marx. Os ambientes estão muito bem distribuídos. No Jockey Club até 13/10.
= Exposição Madeleine Colaço - Belo e delicado trabalho de tapeçaria. Até 11/10 Caixa Cultural.
= Dança Suite Funk (Companhia Urbana de Dança) - A escolha da trilha é boa.
= Musical Hairspray - O país do carnaval merece uma apoteose como esta montagem dirigida por Miguel Falabella. Simone Gutierrez é um absurdo! Certamente a grande revelação do ano. No Teatro Casa Grande até 04/10.
= Show Jardim de Cactus (Dado Villa-lobos) - Som pesado e boas letras.
= CD Certa manhã acordei de sonhos intranquilos (Otto) - A melhor coisa que ouvi até agora em 2009. Valeu esperar tanto tempo por um trabalho (precioso e desigual) do Otto, artista que sabe entender a hibridação da cultura brasileira como ninguém.