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segunda-feira, novembro 30, 2009

Avesso do bordado

Quando Maria Bethânia surge caminhando sobre um lago de pétalas (alimentado por uma fonte de rosas vermelhas) ela é mais que uma cantora: ela afirma que a canção é seu destino. Ela segue a lei do amor pela (via da) canção.
"Festa, amor, devoção" - título de seu mais recente espetáculo - traça um perfil introspectivo da artista: brejeira-sertaneja, nua para si e, de todo modo, feita na Bahia (dos terreiros e das igrejas, do Carnaval e do São João, de João Gilberto e do Olodum). Maria Bethânia se mostra generosa com seu público e com a vida, exatamente porque faz da canção um instrumento de prazer e glória. Ela executa seu ofício com o coração vertendo mel de abelha rainha. Ela evoca saudades e lampejos de dor, passeia pelo trem do desejo, abre e fecha pontos (profusão de entidades) e vira estrela clareando os breus.
A voz de Bethânia (ou das sereias que cantam através dela) faz da saudade (de um amor, ou de um lugar) uma luz que aquece o coração. Luz inventada, torcida no ponto exato e a serviço da vida e para o fim de cada ato da existência. A dor não tem lugar e o amor que desfaz todo mal enche os espaços de alegria. Dobra-se a esquina e as perdas do caminho são superadas. Afinal, o amor não termina no final. Tristezas e saudades deixam de fazer sentido e a devoção (à vida) passa a ser alimentada.
O repertório desenha as intenções do título (três palavras-lemas de Dona Canô, mãe da cantora a quem o show é dedicado): sob as bênçãos de "Santa Bárbara", "É o amor outra vez", "Você perdeu", "Balada de Gisberta", "Domingo"... ganham forças preciosas. Aliás, as canções dos discos "Encanteria" e "Tua", bases do espetáculo, mostram muito mais vigor (certamente pela presença física de Bethânia) no palco. Apenas "Queixa" ficou um tanto passional demais, apesar de bem contextualizada.
A iluminação favorece muito o conjunto cênico. Certa hora, o palco nu (apenas com a presença quase imperceptível de um ponto de luz - pagã ou auto de fé - que desce até o centro do palco), mas repleto da voz da dona, dá espaço para uma coleção de fotografias de lugares do "interior" (sertão). A doce viola não cessa de zunir no ar os acordes que tecem os fios do destino e desfazem os nós da apatia diante das intempéries. Ao invés das saudades em brasas, a certeza de que ficar só (também) é lindo.
A pessoa é para o que nasce, Bethânia (senhora de todos os amantes das canções) sabe disso. Sonho, sol, cor, vida são os motores de seu canto. A canção e a vida agradecem.

Texto publicado no Jornal A União 28/11/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Show Zii e Zie (Caetano Veloso) - A platéia demorou para esquentar, mas o show é muito bom. O som tava ótimo e eu continuo implicando com o uso da asa delta no cenário. Entendo, mas acho cafona!
= Show Eu não sou nenhuma santa (Silvia Machete) - A cantora continua aprimorando sua capacidade única de presença cênica.
= Filme Alô, alô, Terezinha! - Chacrinha merece coisa melhor.
= Peça A história de nós 2 - Irretocável! É ótimo quando uma comédia é feita sem agredir a inteligência do público.
= Peça Musicomédia - Mais do mesmo, mas sempre muito bom.
= Peça Farsa da boa preguiça - Deliciosa montagem do universo de Ariano Suassuna. Elenco ótimo!
= Peça Os difamantes - Para rir do início ao fim. Muito boa.

segunda-feira, novembro 16, 2009

Apontamentos: Canção e Memória III

Não é sem motivo que programas como "Por toda a minha vida" tenham tido grande sucesso de público. Parece que começamos a despertar para a urgência do resgate da história de nossa canção. Para tanto, é preciso unir infraestrutura, mão de obra e canais de divulgação dos objetos. A TV, pela penetração cultural e apelo de público, pode ser um espaço pelo qual a canção pode ser guardada e disponibilizada. Sem falar da internet, com o Youtube promovendo a redefinição da imagem do ídolo pelo próprio fã.
Mas há ainda a pouca pesquisa sobre, por exemplo, as capas de discos; a semiologia da canção (responsável por apontar o que existe por trás da máscara da baiana de Carmen Miranda); e a "cena" contextual de cada canção e/ou movimento (algo que filmes como "Palavra (en)cantada", "Dzi Croquettes", "Loki", "Coração vagabundo"... parecem querer dar conta). De fato, estes filmes cujos arcos narrativos se apóiam na pesquisa da memória, iluminam caminhos que devem ser percorridos. O estudo do contexto histórico não desmerece (ao contrário) a apreciação técnica.
A diversidade de materiais a serem trabalhados é incrível. Faz tempo que o mundo come do nosso "biscoito fino", como queria Oswald de Andrade. A caduca discussão de letra de música é poesia (o que entrava muitas pesquisas) não tem eco no dia a dia. O contato com a literatura acontece diariamente no Brasil através das letras das canções. E este acesso é descentrado. Ninguém precisa "autorizar", como ocorre em outras artes.
Obviamente, nem todo poeta é cancionista (e vice-versa). Há letras que não se sustentam (teoricamente) sem a melodia. Vinícius de Morais tinha consciência desta distinção. Na canção a poesia parece perder o "ranço" acadêmico. Obviamente, isso não ratifica o mito da espontaneidade na canção versus o preciosismo literário. A canção, tendo raiz na fala, possui um tremendo poder de persuasão. Isto porque as falas cotidianas instruem a canção: O rap é exemplo máximo disso.
Assim, a canção é a fixação de algo que se "perde" todo dia, quando falamos. Mais uma vez, estamos no campo da memória. Precisamos de políticas públicas que estimulem a guarda delas: da memória e da canção. Senão continuaremos dependendo dos bravos colecionadores particulares para termos acesso às obras (quem é pesquisador sabe da dificuldade). E não nos enganemos, a mobilidade e a multiplicidade dos suportes não implica concluir, necessariamente, que estamos guardando algo.

Texto publicado no Jornal A União 14/11/2009


Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:


= Dança Répertoire (Ballet de Lorraine) - Boa amostra dos trabalhos de Isadora Duncan, Martha Graham, William Forsythe e Maguy Marin.
= Dança (Not) a love Song (Alain Buffard) - Mídias bem trabalhadas.

= Dança Uma misteriosa Coisa, disse o E.E. Cummings + A dança do existir (Vera Mantero) - Absurdo!
= Dança ATP (Tamara Cubas) - Angustiante e revelador.

= Dança True (10 Artists Collective From Japan) - Muita tecnologia e pouco corpo.

= Dança Va, Vis (Norma Claire) - A boa dança como êxtase. Muito bom!

= Dança Embodied Voodoo Game (Cena 11) - Muita tecnologia por nada.

= Dança De-vir (Fauller/Cia Dita) - Bons movimentos e plasticidade, mas com repetições desnecessárias.

= Dança Influx Controls: I wanna be wanna be (Boyzie Cekwana) - Político ao extremo. Forte!
= Exposição Pierre et Gilles: A apoteose do sublime - Pequena mas importante mostra do trabalho desta dupla que une fotografia e pintura para tematizar, barrocamente, a religião e o sexo, entre outros elementos culturais. Até 17/01 no Oi Futuro-RJ.
= Filme (500) days of summer - Um dos melhores filmes do ano. Roteiro, música, tema... tudo atinge o máximo de resultado.
= Teatro Solidão nos campos de algodão - Muito grito, boa cenografia, interpretações regulares.

terça-feira, novembro 03, 2009

Apontamentos: Canção e Memória II

Como diz Tom Zé: "Tudo só se acha no passado. O futuro é uma coisa que a gente tropeça nele". O Brasil tem muitos músicos intuitivos (etnólogos de ouvido). A importância do registro das apresentações se faz necessária e urgente. Avançamos muito em termos de remasterização e tecnologias de gravação, mas há muito por fazer com o que restou do passado, já que as gravadoras, quando demitiam seus artistas, jogavam fora, todo o material referente a eles. Quantos momentos de extensa importância para se pensar a cultura brasileira foram perdidos! Além do óbvio prejuízo financeiro.
Precisamos romper com a necessidade (imposição, devido à falta de arquivos) de recorrer às coleções de fora para que os pesquisadores possam desenvolver trabalhos sobre a canção brasileira. Os exemplos são inúmeros: O material de Carmen Miranda, o arquivo sobre Edu Lobo e as gravações de Tom Jobim são alguns. Se comparados com os feitos no Brasil da mesma época, os registros de lá denunciam a péssima qualidade de nossos recursos técnicos. Além disso, os arquivos brasileiros são caros e mal cuidados, até porque o restauro, por aqui, não dá visibilidade ao patrocinador.
Assim, a importância dos acervos privados é inegável. Felizmente não são poucas as pessoas que têm consciência de preservação. O pesquisador de música Almirante (pioneiro da conservação), cujo acervo está no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e José Ramos Tinhorão, com objetos sob a guarda do Instituto Moreira Sales, são dois bons exemplos. Afinal, são nas coleções privadas (e públicas) que encontramos a "memória genérica" da identidade brasileira.
Há ainda a questão dos direitos autorais (o triste episódio "Hélio Oiticica" aponta isso), que tem se tornado um sério problema para quem deseja pesquisar, divulgar e disponibilizar as obras. Como preservar o direito de herança e dar ao público em geral o direito de contato com as obras? Esta é uma questão cada vez mais premente.

Precisamos aprender a guardar nossas obras. Certamente, guardar não significa por em cofre, mas manter vivo e em circulação. Guardar é redefinir o que é "autêntico" e "nacional", dentro da perspectiva brasileira, um país cuja musa é híbrida. Entenda-se híbrida como mistura genética e estética. Isso não é teoria, é cotidiano. O samba - nosso "gênero primeiro" - é mestiço. Portanto, guardar é não hierarquizar, mas respeitar as especificidades. (Continua).


Texto publicado no Jornal A União 31/10/2009


Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:


= Peça Theatro Musical Brazileiro 1860-1914 - O espetáculo em cartaz no CCBB é imperdível para quem quer conhecer melhor a história da nossa canção popular. As influências, os temas, as apropriações... Imperdível. As atuações emprestam brilho imprescindível aos costumes de época.

= Peça Oui Oui a França é aqui - João Fonseca dirige um espetáculo que passa em revista (com certeiros exemplos) a influência que a música (e não apenas) francesa exerceu sobre a brasileira.
O elenco é fabuloso.
= Peça Primus - Muito barulho por nada, apesar da boa pesquisa.

= Livro Vinis Mofados (Ramon Mello) - Este tão aguardado livro é exemplar na afirmação do diálogo entre o "novo" e o "antigo" e nas apropriações que a palavra escrita faz da palavra cantada. Merece um texto próprio aqui no blog.

= Exposição Wifredo Lam Gravuras - Maior exposição do artista (surrealista) no Brasil. Até 03/01/2010, na Caixa Cultural.

= Exposição Obranome II - A importância de peças fundamentais para se pensar e estudar a poesia visual no Brasil ficou sufocada na péssima montagem da exposição no Parque Lage.

= Show Festa Amor Devoção - Bethânia é a senhora de todos nós, o avesso do bordado... reconvexo.