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segunda-feira, dezembro 30, 2013

Sons de 2013

 
Lista aleatória dos sons que (me) tocaram em 2013 e continuarão (me) tocando depois da virada:
- Batuk Freak: Carol Koncá
- Soluços: Alice Caymmi e Cadu Tenorio
- Contra Nós Ninguém Será: Edi Rock
- Atento aos Sinais: Ney Matogrosso
- Malagueta, Perus e Bacanaço: Thiago França
- Praia: Mariano Marovatto
- Água Lusa: Jussara Silveira
- Aquário: Tono
- Francis e Guinga: Francis Hime e Guinga
- Se Apaixone Pela Loucura do Seu Amor: Felipe Cordeiro
- Passo Elétrico: Passo Torto
- O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui: Emicida

domingo, dezembro 22, 2013

Um estranho no lago

Acho que nunca vi um filme de grande circuito, mesmo europeu, tratar o nu masculino de forma tão naturalizada, com ângulos nada convencionais, pouco glamourosos e não valorativos da pose, quanto o despretensioso L'inconnu du lac (Um estranho no lago), de Alain Guiraudie. A progressiva implosão do paraíso é muito bem armada sobre as dicotomias tesão e tensão, desejo e instinto de preservação. O mais interessante, porém, para mim, está na pluralidade das personagens. Num lugar onde todos parecem ir à procura de sexo anônimo, cada um consegue apresentar singularidades que o distingue dos outros. E é neste jogo entre indivíduo e comunidade que reside a beleza ética e estética do filme.

sábado, dezembro 21, 2013

Cazuza - pro dia nascer feliz

Que faltam ousadia e coragem no enfrentamento de nossos mitos, isso todos nós sabemos. O excessivo suposto "respeito" ao mito, mata a potência do mito. Quando será que deixaremos de ler a obra de Cazuza apenas como mera expressão de recalque de uma rebeldia adolescente e investiremos naquilo que leva alguns críticos a comparar Cazuza a Rimbaud, por exemplo?
Os experimentos de ritmos - rock e blues; guitarra e tamborim - e de temas - "dor de corno" e sofisticação poética - ficam sempre obscurecidos pelos repetidos causos da vida de um artista obstinado à overdose de vida. Confundem-se "o espírito jovem", ser jovial, aberto ao novo com a crença de que só um pós-adolescente e imaturo poderia viver a vida que Cazuza viveu até a morte. Opta-se por cristalizá-lo como garoto-toddy, negando o seu erotismo no couro em brasa.
Creio que a obra de Cazuza fala, e toda obra deve falar, por si. Portanto, por que o contato com essa obra precisa ser sempre mediada por um discurso-narrador organizador? Basta ler as biografias e assistir aos filmes e espetáculos em sua homenagem para perceber o controle do imaginário cobrindo a personagem com luzes brandas e apolíneas. Tudo o que o artista rejeitou. "Um homem deve procurar a fruta que foi proibida", cantou.
Estes senões me servem para comentar o musical Cazuza - pro dia nascer feliz. Como um artista que enfrentou de dentro a imposição da vida burguesa - dizendo: "Eu sou da geração do desbunde. Nunca tive saco pra milico, desfile, gente com medo. Todo mundo ficava parado, mudo, anestesiado. Não dava pra fingir que não tinha nada. Pra mudar alguma coisa, a gente teve que gritar, se drogar. Ir pra rua, enfrentar nossa própria fraqueza. Era uma maneira de não se render, e não ficar careca, careta" - pode ter a trajetória contada como se se tratasse simplesmente de mais um "rebelde da MPB"? Cazuza não era o ingênuo-alegre como teimam em mostrar. Leitor voraz de poesia e ouvinte de canção popular, ele cantou que é preciso "criar a partir do feio / enfeitar o feio até o feio seduzir o belo", num gesto de quase eco a Adorno que escreveu que "na história da arte, a dialética do feio absorve também a categoria do belo em si". A obra de Cazuza transitou pelos extremos, entre a libertação do viver e o amor livre: "Cada aeroporto é um nome num papel" e "Viver a liberdade, amar de verdade, só se for a dois".
Colar as canções às situações da "vida real" do artista é reduzir sua força criativa. Claro que entendo o apelo pop e comercial que há nisso, mas é triste e paralisante ver como a visceralidade é substituída pela plasticidade do conforto dominical. Essa ânsia por certa beleza organizadora faz com que não apenas Cazuza e sim todos que gravitaram ao redor do sol que ele é, sejam risonhamente caricaturizados. Tornar as canções reféns da vida é mais fácil. E mais desrespeitoso também.
Não nego o apuro técnico do ator transfigurado no ídolo-artista-poeta. No entanto, colocar na voz da mãe encenada de Cazuza a tarefa de narrar a vida do filho - roubando deste a vocalização de canções como "Codinome beija-flor" e "Poema" - é, além de renunciar a voz própria do artista, transformá-lo num "galã bombardeado com balas de hortelã". No fim, tudo se transforma em apenas mais um divertimento simpático para dias mornos. E mais uma vez a complexidade da obra e do artista fica de fora.

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Incêndios

Há uma questão ética movendo a trama de Incêndios, peça de Wajdi Mouawad. Já após o contundente filme de Denis Villeneuve tive discussões acaloradas com amigos sobre a tal ética: Nawal Marwan tinha o direito de só após sua morte revelar a verdade aos filhos gêmeos Jeanne e Simon? Nawal transferiu para eles, sem chance de amenidades, uma dor que pertencia a ela?
Tendo a tentar entender a atitude de Nawal. A violência de saber que o filho que lhe foi tirado ainda bebê é o estuprador que a violentou e a torturou na prisão e, ainda por cima, é o pai do filhos gêmeos que ela acreditava estarem mortos é algo tão assustadoramente insuportável - e o filme de Villeneuve instaura isso nos climas que cria - que o silêncio solapa a "mulher que canta". Criar os filhos do filho-estuprador: como julgar o silêncio de Nawal?
As perguntas são: os filhos precisavam saber a verdade? Até então eles acreditavam que o pai estava morto e nunca tinham ouvido falar de um irmão, portanto, poderiam continuar vivendo sem o peso da verdade. Ou não? Como diz o pressuposto cristão, a verdade liberta. Será? Não estarão os gêmeos aprisionados para sempre a uma não-conversa com a mãe? O direito à verdade é maior do que as consequências que ela pode trazer? Ou mentiras sinceras interessam à manutenção da saúde?
O segredo do espectro de Nawal trunca o lugar de viver, rouba a vida dos filhos, do mesmo modo que o espectro do rei-pai de Hamlet interdita o principado deste. A questão ética se mantêm acesa na montagem de Aderbal Freire-Filho e, creio, assim como no filme, guardadas as devidas diferenças impostas pela linguagem, funda o motor estético. Vide o claustrofóbico cenário, o figurino correto e as boas atuações. Se no filme temos a cena da revelação via marca na pele a la Ulisses de Homero, na peça temos Marieta Severo no papel da mãe: mulher-sereia que canta e pensa, e quanto mais sofre mais bonito canta, como um assum preto.

domingo, novembro 17, 2013

Elysium

Assistindo a Elysium entendi o silêncio da imprensa e da "inteligência" brasileiras sobre o filme.
Tá tudo lá: da batalha que Obama tem enfrentado contra os republicanos que não querem a ampliação do acesso à saúde pela população mais carente à revolta popular contra a concentração de riqueza. Controle do imaginário, biopoder, biopolítica são alguns dos temas que circulam o filme de Neill Blomkamp, mesmo diretor do excelente District 9.
Claro, tudo embalado com a típica ação grandiloquente hollywoodiana-estadunidense, mas nem por isso menos cru e ferino diante da atual situação em que vivemos e pela qual muitos tem sido criminalizados por dizer não ao horror do descarte do humano em nós.
Fiquei realmente positivamente surpreso e impactado com Elysium, da capacidade sensível de captar e condensar as tais "vozes das ruas" ao diagnóstico desencantado do futuro.

domingo, agosto 25, 2013

Upstream color

Upstream color é um filme de sensações. Há tempos eu não assistia a um filme tão empenhado em usar os sentidos. É no jogo dos sentidos que a "narrativa" se constrói. Utilizando o instigante livro/projeto Walden, de Henry Thoreau, e suas reflexões sobre a condição humana, como núcleo duro da trama, o diretor Shane Carruth rediscute perspectivas tais como o uso do corpo como casa e a casa como aquecedora dos afetos; os empreendimentos para fazer do sujeito o centro da discussão; o questionamento sobre o que é riqueza; a propriedade e o excesso de bens, de trabalho, de luxo; a natureza derivada da cultura versus a natureza dada do selvagem... As experiências de Thoreau sobre a tese de que a civilização moderna aperfeiçoa as casas, mas não o "a si mesmo" do sujeito" são trabalhadas dentro de uma ecologia fílmica do estado selvagem: contemplação, limitação das necessidades, obrigações e dívidas. Ao invés do som ao redor, o som de dentro.
Porém, o mais impactante é a completa ausência de ilustração facilitadora, até porque, seguindo sua inspiração filosófica, a vida é algo experimental, sem sentido definitivo. O espectador entra e sai do filme cheio de dúvidas. Até mesmo o diretor, posto que sugere a "morte" do pensamento que lhe inspirou. Por exemplo, se Thoreau sugere uma "pobreza voluntária" do filósofo, em Upstream Color a pobreza vem de forma involuntária. No filme, participar da experiência não é uma escolha posta às personagens, mas a imposição de um ciclo.
Como sabemos, para Thoreau, o que diferencia o filósofo do selvagem é que enquanto este tem uma vida simples e não complexa, aquele tem uma vida simples mais muito complexa, ou complexificada. A partir disso, ao final, algumas perguntas: se a habitação deve espelhar quem a construiu, numa era do crescimento das intervenções cirúrgicas, como estamos nos refletindo por aí? E até que ponto, pelo medo da liberdade, estamos sempre envolvidos em falsas relações?

terça-feira, julho 30, 2013

O testamento de Maria

"Meu corpo é feito tanto de sangue e ossos quanto de memória", p 10.
Sou leitor da literatura ficcional e ensaística de Colm Tóibín há tempos. Creio poder constatar: "O testamento de Maria" é um livro primoroso, ápice de requinte, delicadeza e "olho livre", de uma rara condensação entre forma e conteúdo, amoral - naquilo que isso implica destemor e vontade. Virei a madrugada lendo, sem parar. E ao terminar, quantos pensamentos!
No mais, as palavras de Edmund White traduzem bem o que senti: "Este é um livro curto, mas denso como um diamante. É tão trágico quanto uma Pietá espanhola, mas completamente herético. Tóibín consegue preservar toda a dignidade de Maria sem endossar os mitos que se acumularam em torno dela".

sábado, julho 13, 2013

Los Amantes Pasajeros

Para quem, como eu, acompanha a "linha evolutiva" da filmografia de Pedro Almodovar, "Los Amantes Pasajeros" soa estranho à primeira vista. Acho mesmo que Almodovar tinha uma boa ideia mas a perdeu ao longo da história. A ausência de um núcleo duro direcionando o roteiro rompe com as tramas extremamente bem urdidas presentes nos filmes mas recentes do cineasta.
Porém, distanciando-se, em segunda mirada, podemos perceber que os tipos tão bem criados e tratados por Almodovar para causar "pane no sistema" estão todos ali: nas filigranas - do texto ácido às situações aparentemente soltas.
Por exemplo, em "Los Amantes Pasajeros" Almodovar escamoteia a sátira à crise econômica da Espanha na absurdidade das ações das personagens. Ora, o avião não está indo para o México por acaso. Também não é à toa que os passageiros da classe econômica são dopados com sonífero, enquanto os da classe executiva são excitados e entretidos pelos comissários de bordo. Nem a popização da religião e a estetização da sexualidade se misturam por mero preciosismo fílmico. É o Almodovar de sempre. Talvez voltando ao começo para indicar retornos e recuos necessários à afirmação da continuidade.
"Los Amantes Pasajeros" é, talvez, o filme mais queer/camp/gay do Almodovar; rende boas risadas, bons momentos de auto-críticas e isso é bom demais.

segunda-feira, julho 01, 2013

Maracanã: de aldeia a ilha



(...) Belo Monte... Pinheirinho... Terena... Munduruku... Kaiowá... Aldeia Maracanã... Maré... Orquestrada pelos governos, sob os aplausos de quem se esforça para manter a invisibilidade das culturas indígenas, a polícia reafirmou sua truculência ao enxotar os índios que ocupavam a Aldeia Maracanã, no entorno do famoso estádio de futebol. Enquanto uma parte emparedava manifestantes e imprensa, outra parte da polícia expulsava de um prédio público um grupo de índios de várias etnias que ali se reuniram e moravam há tempos. Voltei para casa transtornado, tamanha a minha impotência diante do violento absurdo. 1500? Não, 2013.
Coniventes, alguns perguntavam: "Por que as regras da cidade não podem ser aplicadas aos índios?". Em contrapartida, outras perguntas me vinham à mente: "o que se odeia no índio"? O que se odeia nas culturas africanas? Era o Maracanã em pleno processo de "civilização", desta vez, tendo como colonizadora a FIFA, com seus padrões higienistas.
Não tenho o menor interesse por jogo de futebol, mas entendo, respeito e admiro a beleza de quem vibra, torce, tem um time para chamar de seu e usa o futebol como escape contra o cotidiano vazio. Voltando de SP, sobrevoo o Maracanã iluminado, "objeto-sim resplandecente", e me emociono. Isso também é Brasil. Morando na esquina do estádio, acompanhei, dia após dia, as regras de assepsia sendo implantadas. É o preço que se paga por sediar a Copa do Mundo. É?
O elogio cego dos civilizados embasbacados com a luxuosidade do estádio restaurado a altos custos não tardou para ser contraposto à realidade fora do Maracanã, da ilha. E quem ousasse protestar era violentamente reprimido, sob a autorização dos jornalões do país. Dizendo "não à repressão", grande parte da população se agitou e, finalmente, legitimou os manifestos levantando bandeiras das mais diversas vontades. O enxame difuso tomou as ruas.
"Pacíficas", "ordeiras" e "fotogênicas" para os padrões de nossa TV, enquanto o jogo não começava, as manifestações eram válidas. Mas bastou a bola rolar em campo, bastou a TV voltar todos os seus olhos para os pés dos jogadores e os confrontos recomeçavam com a polícia "dispersando" a multidão inconformada, limpando as ruas para assegurar a saída de quem pagou para assistir ao jogo.
Eis a potencialização do sonhar ilhas, as esferas protetoras do sonho civilizatório construtor da ponte que "me" separa do "outro". Deslumbrados com as ofertas paradisíacas da ilha, os alunos de uma colega minha de profissão perguntam se "favelado é cidadão". 1500? Não, 2013. Fora da ilha, outros (adultos) deslumbrados perguntam por que não tirar o direito de voto daqueles que recebem o "bolsa família". E as remoções compulsórias se espalham pela cidade. Isso também é Brasil.
Na "grande final", o narrador esportivo diz na TV que o Maracanã agora "é de primeiro mundo", reafirmando nosso "complexo de colonizado", tão disseminado no imaginário coletivo pelas recorrentes comparações midiáticas entre nós e a Europa, ou os EUA. Dentro da ilha, Fred faz um belo e brasileiro gol macunaímico, de oportunidade. Fora da ilha, a fumaça de gás de pimenta empesteia o ar. Dentro da ilha, brasileiros que nem eu, ora dançarinos, protestam em plena festa da FIFA, erguem cartazes, ora, a cada gol, um jogador corre para o abraço do torcedor. Antropofagicamente, sujam a festa asséptica que a FIFA quer impor. Roubam a festa para os de fora da ilha.
Dentro da ilha: "a grandeza épica de um povo em formação [cantando o Hino Nacional] nos atrai, nos deslumbra e estimula", no entanto, os rostos em close não negam a limpeza étnica, a acentuação das diferenças entre classes. Fora da ilha: um sistema de mobilidade urbana caduco e ineficiente. E uma ação incompreensível, porém, reflexo de nós mesmos, da polícia no Complexo da Maré: só para mostrar "como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". Fora da ilha, a lenta luta diária é o regime.
Moradores da Rocinha e do Vidigal nos lembram de que a "a polícia que joga bomba de borracha no asfalto é a mesma que invade a favela com balas letais". Na TV, o consultor de segurança dá a dica, confirmando a atrocidade: "Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana".
O que faremos com a ilha quando a FIFA devolvê-la de volta? Símbolo do país, o Maracanã-ilha se separou do Brasil-continente, à revelia deste. Fora da ilha, à margem do perímetro de 3 km desenhado pela FIFA, os índios da Aldeia Maracanã continuam com a bandeira em punho pela paz sem fronteiras. E as perguntas vêm: É tão difícil entender que o Complexo-da-Maré e o Complexo-do-Maracanã não são partes de países distintos? Por que o Caveirão que aterroriza os moradores das favelas e periferias vira "atração turística" quando instalado como forma de intimidação nas proximidades do estádio? Por que é tão difícil entender que a posição afirmativa dos índios da Aldeia Maracanã é emblema da resistência contra a violência diária perpetrada por políticos eleitos com o nosso voto? O voto, este mais importante instrumento de luta que temos, além do corpo e da voz – da vida.

terça-feira, maio 21, 2013

Virada Cultural SP 2013: A maratona


Chegamos a São Paulo no sábado pela manhã ainda cheios de dúvidas sobre as atrações que veríamos. Afinal, escolher nunca é simples, ainda mais quando todas as opções são sedutoras. Mais tarde, com a programação na mão, descobrimos que o Palco São João era na porta do hotel. E foi pela janela do quarto que ouvimos Lobão começar a passar o som.
Vimos um pouco e seguimos para o Palco Júlio Prestes, para abrir oficialmente com Daniela Mercury e Zimbo Trio. Fazia muito tempo que eu não via um show da Daniela. Ela continua cantando e dançando como sempre. Porém, mais politizada que nunca. Aliás, é dela uma das imagens sonoras que guardei do evento: “quando o bem não toma conta, o mal ocupa o espaço”, disse convidando a multidão a enfrentar com amor as lutas pós-ditatoriais. Parte do público pedia axé, enquanto Daniela cantava clássicos da MPB, na maioria do repertório de Elis Regina. Atenta aos sinais, e com um acompanhamento luxuoso do Zimbo Trio, Daniela deixou para o final do show a dança, fazendo a plateia vibrar com “A cor da cidade”.
Palco preparado, Gal Costa entra em cena sob aplausos e gritos. Como ir ver outra atração? Como arredar o pé para outro lugar? Esta seria a quarta vez que veríamos “Recanto ao vivo”. Porém, de todas as vezes, esta foi a versão com melhor qualidade de som. A própria cantora reconheceu isso algumas vezes ao longo do show. Foi possível perceber cada nota, cada tom. Aliado a isso o brilho de uma Gal Costa solta, linda e graciosa com o carinho do público aceso. Generosa, saudou São Paulo várias vezes, em especial ao lembrar após “Divino Maravilhoso” que a Tropicália havia começado ali.
 Fim de show, já devidamente orientados, fomos caminhando até o Palco Arouche. Só então nos demos conta da dimensão do evento. Nunca tínhamos visto tanta gente na rua. Nem nos carnavais. Depois li que mais de 4 milhões de pessoas ocuparam o Centro de SP. Sinceramente, creio ter passado por muito mais. O cosmopolitismo de São Paulo era 24 fotogramas por segundo diante dos meus olhos. Gente de toda cor. Batuque de toda fé.
Chegando às imediações do Arouche vimos que era doce ilusão pensar que conseguiríamos chegar perto do palco do Sidney Magal. Uma multidão nos separava do cantor. Curtimos um pouco, passamos pelo show de Rappin Hood no Palco República. Tudo lotadaço. Pelo caminho, muitos adolescentes bêbados já caídos pelos cantos. Mas também muita gente espalhada, procurando um lugar, um show para chamar de seu.
Continuamos flanando até o Palco Cabaret (Copan-Ipiranga), quando chegamos lá os Frenéticos Molhados e Croquettes cantavam “Geni e o zepelim”. Ao final da performance, um cantor com uma arma, outro com uma bíblia e outro com uma lâmpada fluorescente apontam o esgoto escuro de nossos preconceitos geradores de gestos de discriminação, enquanto cantavam aos berros: “joga pedra na Geni... maldita Geni”.
Nesse meio tempo lembramos-nos do show da Abayomy Afrobeat Orquestra, no Palco Barão de Limeira. Quando chegamos lá, depois de atravessar marés de gente, já havia terminado. Mas quem já ocupava o palco era ninguém menos que Rita Beneditto. E, como não poderia ser diferente, foi um prazer dar a volta ao mundo ao som de Rita e seus orixás mananciais de luz e bem.
Pés, pernas, coluna e cabeça exaustos, fomos descansar para o que ainda viria. Não antes de ver da janela do quarto A banca (antiga Charlie Brown Jr) entrar no palco diante do uma plateia quentíssima para homenagear Chorão.
Amanheceu. Perdemos Gaby Amarantos e Elza Soares, Monbojó, Passo Torto. O pessoal curtia o som do Anjo Gabriel ali na São João. Passamos pelo Arouche e Lia Sophia já animava o público resistente e o público que estava acordando. As ruas estavam sendo lavadas.
Passamos pelo show dos Mustaches e os Apaches no Copan. Tomamos café. Assistimos um pouco do show da maravilhosa Anna Gelinskas. E saímos passeando pelo Centro. Intervenções artísticas por todos os lados. Grandes filas para os shows no Teatro Municipal. Pessoas voando nos balanços pendurados no Viaduto do Chá. O Anhangabaú cheio de crianças brincando. E uma estátua viva de Iemanjá me deu a certeza de que é possível sim ter diversão e arte para qualquer parte. Aliás, aquela estátua viva, ali, no centro de SP, talvez nem sabia o quanto de contribuição está dando para os processos de respeitabilidade das “diferenças”. Perto dela, uma estátua viva de São Antônio, um Jack Sparrow, uma caveira tocando guitarra... Tudo próximo e misturado. Como deve ser.
Passamos por vários palcos: forró, eletrônico. Voltamos a tempo do Ilê Aiyê no Arouche. E um grande sonho de realizou. Assistir a um show do Ilê era desejo antigo. E como foi lindo e revigorante ver a multidão cantar e dançar ao ritmo daqueles sons tão nossos: vulcão da Bahia. Tão brasileiros: motor de luz. O cansaço já era desumano. Visitamos a instalação “Água”, no Palácio da Justiça. Assistimos alguns stand-ups na Sé, onde também havia um palco de luta livre com plateia super animada.
Dali fomos aproveitar um pouco do João Carlos Assis Brasil, no Palco Piano na Praça (Dom José Gaspar), colado onde um corredor de barracas oferecia comidas deliciosas dentro do projeto Chefs na Rua. Perdemos Racionais Mcs. Traí Criolo com o Ilê. Tomara que ele me perdoe.
Ainda vimos Marisa Orth e Cida Moreira brilharem no Palco Cabaret. E encerramos a Virada ao som de “Vermelho”, com a exuberante Fafá de Belém que cantou o Hino Nacional enrolada à bandeira brasileira para um público delirante. Pé quente, cabeça fria, a esperança que fica é saber que ano que vem tem mais.

sexta-feira, maio 03, 2013

Prazer

"As cascas das árvores crescem no escuro / As cascatas a 24 fotogramas por segundo / Os vocábulos iridescem / Os hipotálamos minguam / Tudo é singular", canta a voz de Gal em mim, enquanto volto para casa depois de assistir à peça "Prazer", em cartaz no CCBB-RJ até 02/06/2013.
Em cena, os atores Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves ensaiam sobre a trama daquilo que nos dá prazer. No jogo estão traumas, recalques, vontades, desejos, amizade, tesão, miradas no espelho, ..., horinhas de descuido.
É na busca pelo motor da luz, tateando na (in)certeza daquilo que faz o coração bater mais forte que as personagens se aproximam da vida sem liberdade, das alegrias catalogadas, das sombras de saudade do espectador.
Mas nada é tão pesado assim. A predominância da cor preta na cenografia, o barulho de água vazando, os cheiros de comida quentinha sendo feita na hora ampliam a dimensão sensorial das personagens-luz: em cena, Camilo, Isadora, Marcos e Ozório são a maçã (ou seria o limão?) brilhando no escuro.
O prazer como aprendizagem, é o que fica: "Be a bright red rose come bursting the concrete / Be a cartoon heart", canta Cold Play. "uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de", escreve Clarice. "Viver é um desastre que sucede a alguns / Nada temos sobre os não nenhuns / Que nunca viriam", canta Gal.
Um banho de mangueira, uma rodada de pão de queijo, o vigor do amigo, a companhia do outro que de tão diferente é semelhante, sugere a Cia. Luna Lunera, apontando que o prazer se faz da mistura exata de dor e alegria. Viver é "estar descobrindo" o ponto móvel - miami maculelê - dessa mistura.
No fim, mais perguntas: O que eu seria se eu pudesse ser eu? E o que eu posso ser sendo o que sou?

segunda-feira, abril 29, 2013

Pretérito imperfeito


Paul Valéry afirmou que “o futuro não é mais o que era”, relativizando nossas certezas. Se o passado, que é o único tempo que existe, ou sabemos existir, porque lá já estivemos, está perdido e o futuro deve ser o que no passado era apenas uma promessa, somos no presente – perfeito ou imperfeito – aquilo que foi sonhado pelos que estiveram no passado. Em Pretérito imperfeito Bruno Lima adensa essas complexas relações do indivíduo com o tempo que não para. Entre esquecimentos e lembranças, os sujeitos líricos expõem experiências íntimas e projetam esperanças para um futuro que, se diferente do que era, ao menos sagre os desejos e as angústias que ainda não foram (nem serão) digeridos.
Sempre no tempo afetivo e contínuo, as vozes que em Pretérito imperfeito cantam parecem saber que a indeterminação e a incerteza são os únicos absolutos em uma vida grávida de transformações e de portas que só se abrem por dentro, mesmo afetadas pelas técnicas de fora. E assim se esboça uma poética do fluxo. E os poemas se conectam para forja auras (almas) que individualizam – no mundo das palavras operárias – o pulso que ainda pulsa tanto no sujeito lírico, quanto no indivíduo ordinário de um mundo desmemoriado e sem cais.
Não se pense, porém, que toda essa ambiência estética esteja a serviço de textos tristes que tentam, na (retro)visão negativa, limpar e aperfeiçoar o passado. O que Bruno Lima elabora é um relicário das muitas marcas de imperfeição que fazem alguém ser aquilo que se é: poesia.

sábado, abril 27, 2013

Reality

Mais do que um filme sobre um programa de TV, Reality trata da nossa paranóia por vigilância - auto e alheia. E por isso vai fundo no desdobramento das questões lançadas por George Orwell, em "1984".
Diretor de "Gomorra" (2008), Matteo Garrone exercita uma crítica ao desejo por fama midiática que parece existir como elemento fundador do sujeito comum contemporâneo.
Na ansiedade de ser chamado para entrar no programa de TV, Luciano (o excelente Aniello Arena) entra numa viagem de hiper-auto-vilígia deixando se enredar em situações tão absurdas quanto verossímeis.
A câmera aos moldes de um reality faz com que tenhamos a sensação de assistir a um "filme dentro do filme", o que é adensado na progressiva (des)reconstrução da personagem de Aniello.
Ao final volta a ontológica pergunta retórica: por que na Ítalia o programa se chama "Grande Fratello", na Argentina se chama "Gran hermano"... e no Brasil se chama "Big Brother"?

quinta-feira, abril 25, 2013

À beira do abismo me cresceram asas

A peça À beira do abismo me cresceram asas é um espetáculo comovente e sincero. A atuação aristocrática de Maitê Proença se equilibra à perfeição com o trabalho cênico despojado de Clarisse Derzié Luz. Ambas mais atentas em expor a "alma" das personagens, do que na criação das caricaturas de duas velhas-meninas exiladas em uma "casa de repouso". Felizmente. Assim podemos entrar em contato com um texto bem urdido, feito mesmo para expressar as emoções que carregamos por uma vida toda.
Maitê e Clarisse se equalizam porque sentem e transmutam em ação duas personagens de personalidades tão diversas quanto complementares: uma amargurada, outra querendo ainda beber as glórias das coisas mais simples da vida. Ambas meninas-velhas com motivações diversas e honestas para serem como são.
O figurino de Beth Filipecki, o cenário de Cristina Novaes e a luz de Jorginho de Carvalho ajudam na composição de um clima neo-romântico - um pensar despretencioso sobre utopias e ideologias - à encenação. A direção de Clarice Niskier e Maitê Proença sabem utilizar bem tais recursos no aprofundamento das questões discutidas em cena.

segunda-feira, março 25, 2013

Carmen Miranda - uma ópera da imagem



Aquilo que os móbiles bem executados sustentam são tensões flutuantes. Equilibrando tais tensões no ar, o móbile resignifica o peso dos objetos e, consequentemente, dos sujeitos. "Simples e suave coisa / Suave coisa nenhuma / Que em mim amadurece", como cantou o grupo Secos e molhados; "Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania", como escreveu Clarice Lispector.
À mercê do vento, os móbiles apontam calmarias, sem deixar de significar e justapor signos de elementos vitais ao humano – à história, aos afetos deste. Feitos para tencionar tais signos, o móbile parece presentificar virtualmente – para fora do pensamento do indivíduo – os artifícios de uma poesia haikai, posto que condensa e prolifera, também pensamentos.
Se aproximarmos nossa reflexão ao pensamento Eisensteiniano sobre montagem e procedimentos, podemos dizer que a eficácia de um móbile está na 'naturalidade' com que dois ou mais elementos opostos e em conflito se amalgamam no fio teso no ar. Ou seja, essa sensação de frágil soltura promovida no móbile combina – não soma, conceitua – objetos de conceitos concretos para formar uma apreciação abstrata de algo, ou de alguém, transformando o exótico em óbvio. E vice-versa.
Isso é para falar da lindeza que é a instalação sonora CarmenMiranda - uma ópera da imagem, que Laercio Redondo expõe até 05 de maio na Casa França-Brasil (Rio de Janeiro), dentro da exposição Contos sem reis, sob a curadoria de Fred Coelho.
A eficácia e o encanto da instalação vão da seleção e combinação dos objetos de cada móbile até a ambiência clara/asséptica do espaço expositivo (um todo-orgânico em movimento), passando pela re-apresentação de Carmen Miranda como escultura sonora bailante: signo aglutinador dos resíduos imagético-afetivos de brasilidade.
No resultado, Carmen está e não está. Ela é corpo e fantasma. Ela é no cacho de uvas de plástico e na mosca-joia que orna o cacho. Ela é na pluma, na folha de palmeira (onde o sabiá é ela) e no limão siciliano. Ela é ela no som-alma.
Laercio suprime, reordena e harmoniza Carmens, em procedimento que evoca a voz da cantora vocalizando: "Cai, cai, cai, cai / Eu não vou te levantar / Cai, cai, cai, cai / Quem mandou escorregar". Há sensação de ser móbile maior que estes versos na voz de Carmen?
Ensaio de étnico-estética, Carmen Miranda - uma ópera da imagem (2010) é uma list song – tipo tão comum a Carmen cantora – que solapa e sustem, reflete e refrata os balangandãs que o tabuleiro da baiana tem: fragmentos de memórias na iminência de um chica chica boom chic.