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terça-feira, abril 24, 2007

A representação do paraíso







































Surgiu uma vontade – não sei de onde – de reler o Canto nono d’Os Lusíadas, de Luís de Camões, poeta que viveu no século XVI, então resolvi postar aqui no blog minhas impressões.
O Canto nono narra, ao longo dos seus 760 versos decassílabos, o regresso à pátria e a recompensa de Vênus aos navegadores lusitanos: Cansados, eles se recolhem às naus e preparam a volta à pátria. A deusa resolve premiar os heróis depois de tantas lutas e sacrifícios (v. 18 e ss.) com prazeres divinos: a Ilha dos Amores (v. 51-87).
Percebo a exaltação às realizações dos navegadores lusitanos e a descrição dos transtornos impostos a eles pelos mouros, com Vênus, auxiliada por Cupido, preparando-lhes uma ilha paradisíaca onde as mais belas ninfas esperarão por eles. Camões, fazendo uso da fanopéia (
levando-nos às imagens que são compostas/propostas pelas palavras ou pelo/no corpo da palavra, segundo Ezra Pound), apresenta-nos o local como um verdadeiro paraíso, seja ecológico (v. 55-63), seja erótico (v. 68-83).
Os marinheiros divisam por entre os ramos das árvores as cores dos tecidos das vestes das ninfas, as quais deliberadamente vão se deixando alcançar. Outras são surpreendidas no banho e correm nuas por entre o mato, enquanto alguns jovens entram vestidos na água. Umas fingem fugir, outras não, e deixam-se cair aos pés de seus perseguidores, numa clara demonstração do jogo erótico-amoroso. É ainda o cio vencendo o cansaço depois de brigarem horas a fio, como canta Djavan, na letra de Faltando um pedaço.
Retomando o paraíso de Maomé, em que sete mil (há variantes do mito) virgens esperam pelo herói, para mim, Camões supera tal ideal, visto que os heróis do seu poema não precisam morrer fisicamente para desfrutarem de orgasmos imortais (v. 88-89).
Durante minha leitura, lembrei que Sérgio Buarque de Hollanda escreve no seu Raízes do Brasil que para aqueles que vivem em um Paraíso “o ideal será colher os frutos sem plantar a árvore”, vivendo em projetos ilimitados de tempos vastos e abundantes, ignorando barreiras. Não é por acaso que mesmo indiretamente, a idéia do Paraíso perpassa todo inventário literário desde Camões.
Entendo, assim, o episódio da Ilha dos Amores como o espaço da utopia, pois é esta natureza edênica a representação do projeto humano de encontrar a “terra prometida”. A Ilha dos Amores, que se configura numa premiação, é, por fim, a representação do paraíso, da glória e da palma, é o louro para aqueles que se esforçam.

Findei minha leitura nada singular com questões fervilhando pois, no contexto contemporâneo de profunda inversão de valores, quando há verdadeiramente o fim das utopias canônicas, pergunto: Quem, ou o que, substituiu o lugar do herói? Quem, ou o que, merece/mereceria os prazeres de Vênus? Ou ainda, quem está desfrutando de tais prazeres hoje-agora?

terça-feira, abril 17, 2007

Lúdico e Rebelião

Pseudônimos, heterônimos, anonimato e toda forma de máscara retórica existem à mancheia no universo literário. Os motivos são muitos, eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia.
Quero comentar o heterônimo Adriana Partimpim, intérprete que dedica seu trabalho, preferencialmente, ao público infantil, criado pela Adriana Calcanhotto.
Calcanhotto fez uso de vários símbolos do universo infantil, por exemplo, como a utilização de máscaras infantis e/ou coloridas para diferenciar-se de seu heterônimo e revelou que Partimpim é como o pai dela a chama desde criança.
A máscara por si só já aponta para uma transformação ou disfarce, pois com seu simbolismo primitivo e antigo, a máscara tem a força de encarnar naquele que a usa o “espírito” representado por ela.
Em entrevista, Partimpim esclarece que seu objetivo ao lançar o cd, em 2005, foi o de “mudar o mundo” e nada melhor do que começar pelas crianças.
Um heterônimo nitidamente feminino e que adora cantar para/com as crianças, ora emprestando voz a elas, ora àqueles que com elas vivem; ora levando-as ao mundo mágico das fábulas – Formiga bossa nova – e da poesia, ora conscientizando-as para questões universais e essenciais à constituição do ser – Saiba.
Dentre as dez faixas do disco destaco a Canção da falsa tartaruga, uma música de Cid Campos para a tradução feita por Augusto de Campos da canção da falsa tartaruga, do livro Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll.
A ligação de Calcanhotto com a literatura é bastante estreita, haja vista a interpretação de poemas musicados como: A fábrica do poema, de Waly Salomão, musicado por Calcanhotto, O verme e a estrela, do simbolista Pedro Kilkerry, musicado por Cid Campos e O outro, do poeta português Mario de Sá-Carneiro, musicado por Calcanhotto, entre outros exemplos.
Certamente Calcanhotto empresta a Partimpim essa vivência, para que ela possa criar seu próprio “país das maravilhas” ou seu “mundo melhor”, mundo em que o lúdico não é sinônimo de alienação, mas de rebelião, de conscientização.
Destaco ainda Formiga bossa nova, música de Alain Oulman sobre o poema Velha fábula em bossa nova, do português Alexandre O’Neil. O poema reconstrói a famosa fábula de La Fontaine A cigarra e a formiga, com o canto da cigarra, que até queria ser “minuciosa” como a formiga, mas não pode negar sua natureza – aliás, ninguém pode.
O disco tem ainda interpretações exemplares para Saiba, de Arnaldo Antunes, e Fico assim sem você, de Abdullah e Cacá Moraes.
Fica claro que, para Partimpim, a criança não é o futuro do planeta, como afirma o clichê social, mas sim, é o presente, pois através de sua conscientização hoje teremos sempre um mundo melhor.
Para o adulto, Adriana Partimpim desperta a nostalgia, dentre outros sentimentos, ao re-significar o passado, através do resgate de canções, livros, fábulas... re-significando também, para as crianças do presente, introduzindo estas na sociedade, pela arte feita com qualidade estética.
Sendo de sagitário, e sempre me emocionando com a interpretação de Partimpim, encerro este post com a letra da canção Ser de sagitário, de Péricles Cavalcanti.

Você metade gente
e metade cavalo
Durante o fim do ano
cruza o planetário

Cavalga elegância
Cabeça em pé de guerra mansa
Nas mãos arco e flecha
Meu coração
Aguarda e acompanha
seu itinerário
Até o fim do ano
ser de sagitário

Você metade gente
e metade cavalo

terça-feira, abril 10, 2007

A pingolândia e o amor (ainda) possível

Comentários sobre a sexualidade dos pingüins têm aparecido à mancheia, como assunto de jornal.
No cinema, o documentário francês “A Marcha dos Pingüins”, por exemplo, foi o vencedor de um Oscar em sua categoria, contando a jornada para o acasalamento e nascimento da espécie na Antártida.
Há também o exemplo de “Happy Feet”, vencedor do Oscar de melhor filme de animação, com a história de Mano, um pingüim imperador que não sabe cantar, tornando-se O diferente, entre seus semelhantes, mas acolhido num grupo, também de "diferentes", de outra espécie de pingüins.

Uma história verídica aconteceu no zoológico do Central Park, em Nova York. É lá que moram Roy e Silo, dois pingüins machos, juntos há mais de seis anos em uma relação monogâmica e com muito sexo. Os veterinários já tentaram oferecer fêmeas aos dois, mas eles as recusaram e, na falta da possibilidade de um ovo para procriarem, os dois adotaram uma pedra e ambos a chocaram.
Os veterinários decidiram dar-lhes um ovo e após 34 dias, nasceu Tango, uma filhote cuidada com todo carinho pelo casal.Transposta para o universo da arte, “And Tango Makes Three” é o nome do livro baseado nessa história real.
Porém, como nem tudo são flores, pais americanos revoltados fizeram o livro ser retirado da seção infantil da biblioteca de Savannah, em St. Joseph, no estado de Missouri, por sua temática homoerótica que, acreditam tais pais, as crianças pequenas ainda não estão preparadas para lidar.
De qualquer forma, o livro vem sendo bem aceito em outras partes do mundo onde foi lançado e ajuda crianças pequenas a entenderem que a diferença está em todos os lugares, sem exceção. Afinal, como afirma Ken Hanes, no prefácio do seu livro “Guia prático para a vida gay”, “milhões de crianças sofrem terrivelmente porque seus pais, na maior parte dos casos, não sabem nada sobre o fato de alguém ser gay. As verdades sobre a vida gay permanecem fora da esfera de competência da maioria dos pais. E aqueles poucos que têm conhecimento dessa realidade gay quase nunca admitem conversar francamente com seus filhos sobre o assunto.”
É nesta onda que foi lançado aqui no Brasil o livro “Gus & Waldo: o livro do amor”, de Massimo Fenati, com primeira edição publicada na Grã-Bretanha em 2006, traduzido para nós por André Fischer (editor executivo do site Mix Brasil).
A narrativa está centrada na história de amor, entre os personagens-título, ambos cansados de viverem sozinhos. Depois de um furtivo encontro, num shopping, eles não conseguem mais se desgrudar, até que surgem as diferenças entre eles e, com medo de terem chegado ao fim da excitante relação, procuram o Dr. Khama Leão, terapeuta de casais.
Sem dúvida alguma é um inteligente mote para tratar das relações monogâmicas. Pois, em um momento em que o sexo descompromissado com questões mais profundas do Ser parece querer suprir os vazios do Homem contemporâneo, Gus e Waldo, provam, pela contramão dessa onda, que amar pode dar certo e se apaixonar pela mesma pessoa todos os dias e ter por ela o mesmo tesão de sempre é algo possível, mesmo esbarrando nos impasses da nossa vida líquida, desde que os dois queiram e eles querem muito.
Tal mensagem, com uma bela e pontual ilustração, capaz de agradar não só aos infantes, mas principalmente aos adultos mais exigentes, serve para as crianças de todas as faixas etárias, mesmo, talvez principalmente, para as que cronologicamente não são mais crianças.

terça-feira, abril 03, 2007

Ah as malditas comparações!

Sexta-feira passada, Carlos e eu fomos assistir à peça “A hora e a vez de Augusto Matraga”, adaptação do conto de mesmo nome de João Guimarães Rosa. Ao final saí com a sensação de que havíamos assistido a um bom espetáculo, mas com a sensação de que faltou alguma coisa. Sei que toda adaptação é difícil, ainda mais quando é para uma linguagem diferente de arte. Por isso não se deve fazer comparações, mas...
“A hora e a vez de Augusto Matraga” é considerado por muitos críticos a mais importante produção do escritor em Sagarana, tanto por sua estrutura narrativa quanto pelo tratamento da luta entre o bem e o mal, e todo o questionamento decorrente de uma tomada de consciência do homem optando por uma dessas forças.
Isso, de alguma forma, está presente na peça e de maneira muito interessante do ponto de vista das soluções cenográficas elaboradas por Carlos Alberto Nunes, dos figurinos de Ney Madeira e do projeto de luz de Renato Machado – desde a metáfora da personagem Mimita (flor despetalada), passando pela surra que Nhô Augusto leva (um pedaço de carne é “amaciado” em cena), até a luta final.
No texto de Rosa, o próprio narrador questiona o conceito de realidade e ficção na literatura, muitas vezes caracteriza como folclóricas as histórias que conta, inserindo nelas quadrinhas populares e dando-lhes um tom épico. Na peça, o texto é narrado e interpretado e as quadrinhas cantadas por todos os personagens em cena, numa fragmentação que realmente funciona.
Há, no conto, três movimentos nodais que impingem a ação e bem marcados na peça, sob a direção de André Paes Leme:

1º Movimento – Augusto como figura do mando, perverso, brutal, desregrado, mundano, demoníaco e assassino;
2º Movimento
– Metáfora da queda financeira, moral (perda da mulher para Ovídio), peia que leva do Major Consilva e queda física;
3º Movimento
– Homem do bem, metáforas e signos da religião cristã;

Fica claro, mesmo com estas pequenas observações acima, que interpretar uma personagem como Matraga – “Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves (...)” – é um processo desafiador para qualquer ator. São muitas as nuanças, sutilezas, subjetividades e subtextos presentes e característicos da obra rosiana.
Como disse Rosa
“O sertão é o terreno da eternidade, da solidão”, e é exatamente esta “solidão” que falta à interpretação de Vladimir Brichta. O espectador mais consciente da linguagem rosiana fica esperando pelas transformações internas da personagem, aliás tais movimentos só são perceptíveis no todo da peça, numa clara mostra de que o processo de construção da figura dramática, para Brichta, ficou na superfície.
Há momentos, aqui e ali, de maior empenho do ator, mas o “homem” cuja história de redenção e espiritualidade, cuja história de conversão e de passagem do mal ao bem, da perdição à salvação, esse eu não vi em cena.

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Em tempo, não posso deixar de lembrar que assisti à bela e melhor resolvida – por parte da interpretação de Nanego Lira (Primo Ribeiro), Soia Lira (Ceição), Servílio Gomes (Jiló) e Everaldo Pontes (Primo Argemiro) e sonoplastia do músico Escurinho – montagem de “Vau da Sarapalha”, uma adaptação do conto "Sarapalha", também de Sagarana, com direção de Luiz Carlos Vasconcelos, do Grupo Piolim-PB.