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segunda-feira, março 23, 2009

É tudo poesia?

O documentário "Palavra (En) cantada", de Helena Solberg, tem como mote um tema nevrálgico dos cursos de Letras: a relação entre letra de música e literatura.
Mas acima disso, "Palavra (En) cantada" presta indireta homenagem a pesquisadores que desde o lançamento de o "Balanço da bossa e outras bossas" (1967), de Augusto de Campos, não se deixaram vencer pelas críticas de falso academicismo. Neste livro fundamental, o autor demonstra que certas canções apresentam procedimentos e estranhamentos típicos da poesia. Nesta mesma linha perseveraram importantes teóricos e críticos como Luiz Tatit (USP), Amador Ribeiro Neto (UFPB) e Júlio Diniz (PUC-Rio), este último, coordenador da pesquisa para o filme.
De fato, estes e outros pensadores da canção já demonstraram que nem toda letra é poesia, porém é preciso ter "olhos livres" e competência para diferenciar uma coisa da outra. Aliás, cabe apontar que canção não é nem melodia nem poesia, isolados um do outro, mas é, como sugere Tatit, canção é o "malabarismo" da letra com a melodia.
"Palavra (En)cantada" tem momentos de puro encanto, como quando a tela é tomada pelos textos de Daniel Arnaut, acompanhados pela voz de Adriana Calcanhotto, que canta os versos do poeta provençal do século XII. Ou as imagens da grande Hilda Hilst pouco antes de morrer. Há também imagens raras como trechos da encenação de "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, no Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França, em 1966, e um depoimento histórico de Caetano Veloso no Festival da Record, em 1967, logo após cantar "Alegria, Alegria".
É assim, sobrepondo e costurando performances e depoimentos de vários artistas, cancionistas e teóricos da canção, que Solberg encontra o roteiro para o filme. E acerta.
De resto, Helena Solberg e Marcio Debellian – responsável pelo argumento do filme – acrescentam à discussão acadêmica sobre os limites da palavra cantada, mais uma imagem possível para o Brasil: a força da nossa tradição oral. Viajando do repente nordestino ao rap das periferias das grandes cidades o documentário deixa claro que nosso país cultiva a palavra cantada como sua expressão artística maior.
"Palavra (En)cantada" apresenta um trabalho de pesquisa exemplar e muito bem aproveitado. É cinema, canção e poesia unidos para pensar a arte. Um importante registro de nossa cultura que tem tudo para agradar tanto aos acadêmicos quanto ao público em geral. O público de um país essencialmente musical.

Texto publicado no Jornal A União em 21/03/2009.
http://www.auniao.pb.gov.br/v2/index.php?option=com_content&task=view&id=21474&Itemid=55

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:
= Peça A insólita cozinha de Leonardo DaVinci - Monólogo que cresce do meio para o fim e apresenta uma visão poética da presença de Leonardo na construção do comportamento ocidental.
= Filme El baño del Papa (O Banheiro do Papa) - Emocionante. Mesmo que, vez ou outra, o diretor apele e beire o sensacionalismo.
= Mostra O cinema de Maya Deren - Impressionante como estes curtas dos anos 1940 ainda continuam ousados e modernos. Os recursos e soluções de Deren lançaram luz para questões que ainda hoje são discutidas nas montagens fílmicas.
= Mostra Brando - Reunião de bons filmes que mostram a trajetória do ator. Até 29/03 na Caixa Cultural Rio.
= Livro Elos de Melodia e letra: Análise Semiótica de seis canções (Luiz Tatit e Ivã Carlos Lopes) - Mais um trabalho que dá continuidade ao projeto de Luiz Tatit, em que a canção é o foco de análises e considerações sempre originais e competentes. Tatit e Lopes fazem seus estudos inspirados nas formulações do linguista L. Hjelmslev e do semioticista A. J. Greimas.
= CD Todo bom (Zabé da Loca) - Ouvir Zabé sempre me remete ao quintal da minha avó. Além disso, o cuidado que têm dado ao trabalho de Zabé é bom e respeitoso.

terça-feira, março 10, 2009

Cartão-postal

Em tempos de “Era Obama”, vale a pena lembrar o rap “O Herói”, composto por Caetano Veloso para o disco “Ce” de 2006. Em “O herói” quem “fala” é um militante que a princípio quer semear o “ódio racial”, e a “separação nítida entre as raças”, bem ao modelo da América do Norte. Porém, ele percebe que não pode ir adiante porque descobre que é, na verdade, o homem cordial que veio para “afirmar a democracia racial”.
Em entrevista, o compositor afirmou que “é como se fosse a trajetória de um ativista do movimento negro que, depois de se opor a todas as ilusões da harmonia racial brasileira, termina reafirmando-se como o homem cordial e instaurador da democracia racial. É como se ele atravessasse o processo inteiro e no fim chegasse a uma coisa a que só um brasileiro poderia chegar”. Antonio Risério, no inspirado e audacioso livro “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”, aponta os riscos da transculturação do modelo americano de distinção racial em um país como o nosso. Ele afirma que “esta visão monocular – que vê a mestiçagem como embranquecimento dos pretos, mas nunca como escurecimento dos brancos – parece ser uma constante do racialismo”. Para este autor, “o ‘genocídio’ do negro não pode ser pensado sem o ‘suicídio’ do branco”.
Mas, voltando ao rap de Caetano, a narrativa de quem quis “fomentar o ódio racial”, é tão forte em termos de crítica social quanto “Haiti”. “Um olho na Bíblia, outro na pistola” aponta o herói, redefinindo-se. O “ódio” tem como sugestão principal o fato do herói velosiano ter nascido “num lugar que virou favela” e ter crescido “num lugar que já era”, enfatizando a marginalidade a que o herói-mulato é submetido. Além disso, os versos “por um triz não sou bandido / sempre quis tudo o que desmente esse país encardido” são reveladores de alguém que teve que se subverter aos preconceitos e expectativas da sociedade. Da sociedade colorida e encardida do Brasil.
Para Caetano, o movimento pela igualdade racial, quando chegar à sua plenitude, se não houver um desvio alienante, “vai reencontrar esses conteúdos brasileiros, por causa de nossa muito profunda miscigenação e da tradição de não manifestar o ódio racial”. É assim que em “O Herói” o mulato surge com a missão de “instaurar a democracia racial”. Nada mais justo em um país cujas raízes estão fincadas no hibridismo das raças.
Resta citar, para concluir, que o mesmo Caetano Veloso na canção “Os passistas” canta a beleza de dois mulatos, que fotografados, revelam-se como nosso “cartão-postal”.

Texto publicado no Jornal A União em 07/03/2009.

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Exposição Rubem Grilo Xilográfico (1985 a 2009) - Importante amostra do trabalho de Rubem Grilo. Entre as peças, matrizes usadas pelo artista. Prestar atenção nos detalhes das figuras geométricas. Na Caixa Cultural, até 12 de abril.
= Filme Slumdog Millionaire (Quem quer ser um milionário?) - Mostra um país bem diferente da Índia televisiva. Bonito argumento, trilha sonora incrível, atuais competentes..., mas não merecia o Oscar.
= Filme The Day the Earth Stood Still (O Dia em que a Terra Parou) - Só as cenas finais pagam o filme.
= Filme Rachel getting married (O casamento de Rachel) - Um filme da era pós-eleição-Obama denso e cheio de personagens complexos, como a vida. O roteiro bem elaborado e as tomadas a la documentário enchem o filme de uma delicada e precisa introspecção.
= Filme Valkyrie (Operação Valquíria) - O melhor do filme é mostrar o óbvio: nem todos os "aliados" de Hitler eram nasistas.

segunda-feira, março 02, 2009

Presença de Milk e Vicente

A estreia do filme “Milk”, de Gus Van Sant, além de lembrar que depois de tantas lutas e algumas vitórias, as minorias ganharam mais espaço e voz, e que na busca de liberdade não há facilidades, também nos faz refletir sobre como esquecemos dos que realmente fizeram algo significativo por ela: a liberdade.
Harvey Milk (1930-1978) foi pioneiro ao relacionar a discussão dos direitos dos gays com, por exemplo, a luta pela igualdade entre brancos e negros, liderada por Martin Luther King. O filme apresenta o sacrifício de um homem convicto de que valia a pena lutar pelo direito à liberdade. Poucos de fato têm tamanho desprendimento e só pelo fato de no Brasil de hoje quase nada se conhecer da história de Milk, interpretado no filme por Sean Penn, valeria a pena ir ao cinema. Mas Van Sant, com a peculiaridade que lhe é devida, faz mais que isso. Ele recria uma época em que a efervescência cultural aliada a uma ingenuidade sedutora conseguia fazer a humanidade caminhar para frente.
À época de Milk, já vivíamos sob ditadura no Brasil, e a liberdade era aventada de forma clandestina. Numa dessas felizes coincidências, esteve em cartaz no Rio por estes dias a peça “O Assalto” (1969), de José Vicente. Nela, Victor rouba o banco onde trabalha e quer dar o dinheiro a Hugo, faxineiro do banco.
Haroldo Costa Ferrari e Fransérgio Araújo, ambos egressos do Teatro Oficina, encarnam respectivamente as personagens e emprestam o tom correto ao texto atualíssimo da peça, sob direção de Marcelo Drumonnd. O uso do poder como sedução, entrecortado por um tortuoso jogo de solidão e diferenças de classes, é o mote da peça, que pioneiramente trouxe aos palcos a questão gay naqueles anos de chumbo.
Mais preocupado em demonstrar a revolta contra o sistema e a hipocrisia, do que com a criatividade estrutural, José Vicente tematiza questões existenciais que parecem próximas às que motivaram, pelo avesso, as atitudes na vida pessoal de Harvey Milk. Assim, peça de José Vicente e o filme de Gus Van Sant nos lançam esperança quando sabemos que a luta por liberdade parece não ter fim, certos de que a presença intelectual dos dois acompanha qualquer discussão sobre o assunto, na vida ou no palco.
Milk e Zé Vicente, cada um ao seu modo, merecem a nossa atenção e das novas gerações. Se hoje é possível levar 3 milhões para a Av. Paulista e “sair do armário” ficou menos doloroso, devemos lembrar de quem fez isso antes de tudo “virar moda”.

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Peça Hospital da Gente - Escrita a partir dos contos do livro "Contos Negreiros" de Marcelino Freire, a peça tem montagem-instalação engajada e inteligente.
= Peça Apocalipse Segundo Domingos Oliveira - Uma personalíssima visão do juízo final, com um Deus insatisfeito com o destino escolhido pelos homens. Vale a pena conferir esta boa amostra de uma "peça de diretor".
= Peça O estrangeiro - Incrível trabalho de luz (Maneco Quinderé) e trilha sonora (Marcelo H) para o texto de Albert Camus. O esforço cênico de Guilherme Leme tem resultado favorável para um texto que trata da perplexidade do homem diante de sua humanidade. Imperdível!
= Filme The Reader (O Leitor) - Denso e conciso, o filme é mais uma película pós-nazismo.
= Filme Vick Cristina Barcelona - Um Woody Allen refinado nas questões morais, mas com pouco entusiasmo final.
= Filme Be Kind Rewind (Rebobine, Por Favor) - Sensível homenagem à história do cinema, com bons momentos para rir e se emocionar.
= Filme Yes Man (Sim Senhor!) Um concentrado e "menos afetado" Jim Carey brilha mais uma vez num filme de "autoajuda" para "gente grande".