“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, / Ninguém me peça definições! / Ninguém me diga: ‘vem por aqui’! / A minha vida é um vendaval que se soltou, / É uma onda que se alevantou, / É um átomo a mais que se animou. / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!”, declama.
Mas é no roteiro confuso do show - não é fácil
entender as ligas entre as canções dentro de cada bloco - que reside a alma da
persona encarnada por Bethânia em cena. As variações bruscas de ritmo e humor
plasmam os sentimentos conflitantes de uma personagem que ama o que faz -
"Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito
de viver / O que é amar" -, mas está usando a voz para dar uma resposta
direta à maldade alheia: "Se me ofendes / Tu serás o ofendido".
Talvez para agregar força a esta persona magoada (“Fera
ferida”, presente no roteiro com estranho arranjo), Bethânia canta "Não
enche". A canção do irmão, no modo como ele a canta, com as separações
curtas entre as sílabas melódicas, o que imprime velocidade à canção, como um desabafo
brutal, não fica à vontade nos alongamentos vocálicos da cantora. E ela tem
dificuldade para finalizar os versos.
Mas se no caso de “Fera ferida” podemos identificar
perdas na potência da mensagem da letra diante do arranjo inferior ao que a
própria Bethânia já imortalizou no disco As
canções que você fez pra mim, sob a sabedoria de Wagner Tiso, canções
conhecidas e sempre esperadas pelo público fiel ganham novas e frescas versões,
refrigerando o repertório mais passional da dona do dom.
Os pontos altos do show ficam por conta de "A
dona do raio e do vento", auxiliada pelos efeitos da cenografia de Bia
Lessa; o xote cheio de dengo criado para "A nossa casa", de Arnaldo
Antunes e cia; a bela interpretação de "Quem me leva os meus fantasmas",
canção de Pedro Abrunhosa, mais uma vez fechando um 1º ato de um show de
Bethânia... Aliás, no 2º ato, quando as canções parecem mais íntimas à cantora,
que deixa o teleprompter de lado e baila espontânea, o
show encontra maior empatia com o público, que responde com aplausos e gritos
depois do belo conjunto de sambas de rodas, ciclo iniciado e fechado com
"Reconvexo".
E há a canção-poema que dá nome ao show:
"Carta de amor", cuja mensagem dos versos virulentos e assustadoramente
bem armados se ameniza quando a cantora declama: "Todas as cartas de amor
são ridículas (...) só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que
são ridículas". Mais um dos conflitos vividos pela persona encenada.
O show é sim de "uma pessoa se
entregando", transformando lágrima em canção. Tudo meticulosamente
orquestrado pela consciência de palco de Maria Bethânia, que sabe usar cada
inflexão e cada gesto a serviço do êxtase de seu público. "E é um só
sentimento / Na platéia e na voz".
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