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terça-feira, novembro 20, 2012

Carta de amor

"Deixe em paz meu coração / Que ele é um pote até aqui de mágoa" são versos que, se já traduziam o disco Oásis de Bethânia, reverberam no roteiro do show Carta de amor, apresentado dias 18 e 19/11, no Vivo Rio. A canção de Chico Buarque não está no set list, mas se presentifica como o fel que amarga, mas também alimenta o desejo de cantar. E Bethânia canta cada vez melhor. Com a potência vocal de dar inveja a qualquer noviça, e a carga de emoção que inibe qualquer artista que se dedique ao sacerdócio do canto.
“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, / Ninguém me peça definições! / Ninguém me diga: ‘vem por aqui’! / A minha vida é um vendaval que se soltou, / É uma onda que se alevantou, / É um átomo a mais que se animou. / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!”, declama.
Mas é no roteiro confuso do show - não é fácil entender as ligas entre as canções dentro de cada bloco - que reside a alma da persona encarnada por Bethânia em cena. As variações bruscas de ritmo e humor plasmam os sentimentos conflitantes de uma personagem que ama o que faz - "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar" -, mas está usando a voz para dar uma resposta direta à maldade alheia: "Se me ofendes / Tu serás o ofendido".
Talvez para agregar força a esta persona magoada (“Fera ferida”, presente no roteiro com estranho arranjo), Bethânia canta "Não enche". A canção do irmão, no modo como ele a canta, com as separações curtas entre as sílabas melódicas, o que imprime velocidade à canção, como um desabafo brutal, não fica à vontade nos alongamentos vocálicos da cantora. E ela tem dificuldade para finalizar os versos.
Mas se no caso de “Fera ferida” podemos identificar perdas na potência da mensagem da letra diante do arranjo inferior ao que a própria Bethânia já imortalizou no disco As canções que você fez pra mim, sob a sabedoria de Wagner Tiso, canções conhecidas e sempre esperadas pelo público fiel ganham novas e frescas versões, refrigerando o repertório mais passional da dona do dom.
Os pontos altos do show ficam por conta de "A dona do raio e do vento", auxiliada pelos efeitos da cenografia de Bia Lessa; o xote cheio de dengo criado para "A nossa casa", de Arnaldo Antunes e cia; a bela interpretação de "Quem me leva os meus fantasmas", canção de Pedro Abrunhosa, mais uma vez fechando um 1º ato de um show de Bethânia... Aliás, no 2º ato, quando as canções parecem mais íntimas à cantora, que deixa o teleprompter de lado e baila espontânea, o show encontra maior empatia com o público, que responde com aplausos e gritos depois do belo conjunto de sambas de rodas, ciclo iniciado e fechado com "Reconvexo".
E há a canção-poema que dá nome ao show: "Carta de amor", cuja mensagem dos versos virulentos e assustadoramente bem armados se ameniza quando a cantora declama: "Todas as cartas de amor são ridículas (...) só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas". Mais um dos conflitos vividos pela persona encenada.
O show é sim de "uma pessoa se entregando", transformando lágrima em canção. Tudo meticulosamente orquestrado pela consciência de palco de Maria Bethânia, que sabe usar cada inflexão e cada gesto a serviço do êxtase de seu público. "E é um só sentimento / Na platéia e na voz".

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