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sexta-feira, novembro 30, 2012

Ulysses

A princípio, o Ulysses compartimentado e fragmentado de José Rufino remete o espectador ao Ulysses de James Joyce, que, multiplicado em outros, descama-se para se restituir em Eu. Onde as sereias aparecem como visagens urbanas: "Wise Bloom eyed on the door a poster, a swaying mermaid smoking mid nice waves. Smoke mermaids, coolest whiff of all. Hair streaming: lovelorn".
Noutro momento, a monumentalidade da obra estendida no centro da nave central da Casa França-Brasil evoca o herói homérico, finalmente em repouso eterno, depois de tantos périplos. Ele é todo-memória. Foi para ele que as sereias cantaram: "'Todas as coisas sabemos, que Troia de vastas campinas, / pela vontade dos deuses, Troianos e Argivos sofreram, / como, também, quanto passa no dorso da terra fecunda'".
Noutro lance de pensamentos diante da obra, intuímos ser no Ulysses de Dante Alighieri - que nem chegou a ouvir as sereias - que reside o pulso do Ulysses de Rufino, cujo corpo vazado descansa em paz, pés virados para a saída, no fundo do útero-sarcófago amarelo-marinho, enquanto a alma vaga pelos infernos: "'Quando fugi dos feiticeiros encantos de Circe (...) Já éramos velhos alquebrados, eu e meus seguidores, quando chegamos enfim ao estreito que Hércules deu por limites ao mundo [estreito de Gibraltar] (...) Dessa terra nova contra nós investia um furacão (...) E o mar terminou por nos sepultar".
Afinal, e ao final do contato, o Ulysses de José Rufino protegido pelo prédio impregnado de histórias da Casa França-Brasil é uma tensão flutuante de camadas-sobre-camadas de referências, desejos, resíduos, escaninhos, naufrágios: canto e silêncios sirênicos.

quinta-feira, novembro 29, 2012

Esta Criança

Como é enriquecedor ver Renata Sorrah em cena! E ver e sentir as possibilidades que o trabalho (a técnica) e a paixão já imprimiram em sua potência-atriz. Tudo isso é valorizado na peça Esta criança. Ali é possível se emocionar a cada deslizamento feito por Sorrah de um personagem a outro.
Para isso agem também: o vigor do texto de Jöel Pommerat, brilhantemente traduzido por Giovana Soar, a direção de Marcio Abreu atenta às mudanças sutis das ações, o elenco em equilíbrio perfeito com as exigências de cada ato (Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha) e o cenário de Fernando Marés, que se protubera sobre a plateia, instigando o público a também estar em cena, ir além do buraco da fechadura, fazer parte das questões do palco, da vida: todos diante do espelho.
A direção de Marcio Abreu aproveita cada camada, o melhor e o mais cruel de cada situação-limite na promoção da liga entre as 10 pequenas peças dentro da peça, com a sensibilidade de quem sabe que "antes de existir alfabeto existia a voz / antes de existir a voz existia o silêncio / o silêncio".
É nos embates entre pais e filhos, os modos de criar a cria que o texto se move, cutucando feridas, iluminando recantos escuros. E a cada progressão de cena, a cada evolução de corpo e alma dos atores em cena, um riso e/ou uma lágrima no espectador. Tudo junto: cortes secos, relações prazerosamente dolorosas, extremamente íntimas e singulares, sem manuais. Porque assim é a vida: onde nos damos no melhor espetáculo que podemos, onde os sentidos de cada coisa são múltiplos e dói e é bom vivê-los em suas multiplicidades.
Que experiência enriquecedora sentir um só sentimento na plateia e no corpo-voz dos atores (os quatro em mergulho profundo): arte e humano em diálogo simbiótico. Assim é (foi, para mim) Esta criança, em cartaz no CCBB RJ até 27 de janeiro de 2013.

terça-feira, novembro 20, 2012

Carta de amor

"Deixe em paz meu coração / Que ele é um pote até aqui de mágoa" são versos que, se já traduziam o disco Oásis de Bethânia, reverberam no roteiro do show Carta de amor, apresentado dias 18 e 19/11, no Vivo Rio. A canção de Chico Buarque não está no set list, mas se presentifica como o fel que amarga, mas também alimenta o desejo de cantar. E Bethânia canta cada vez melhor. Com a potência vocal de dar inveja a qualquer noviça, e a carga de emoção que inibe qualquer artista que se dedique ao sacerdócio do canto.
“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, / Ninguém me peça definições! / Ninguém me diga: ‘vem por aqui’! / A minha vida é um vendaval que se soltou, / É uma onda que se alevantou, / É um átomo a mais que se animou. / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!”, declama.
Mas é no roteiro confuso do show - não é fácil entender as ligas entre as canções dentro de cada bloco - que reside a alma da persona encarnada por Bethânia em cena. As variações bruscas de ritmo e humor plasmam os sentimentos conflitantes de uma personagem que ama o que faz - "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar" -, mas está usando a voz para dar uma resposta direta à maldade alheia: "Se me ofendes / Tu serás o ofendido".
Talvez para agregar força a esta persona magoada (“Fera ferida”, presente no roteiro com estranho arranjo), Bethânia canta "Não enche". A canção do irmão, no modo como ele a canta, com as separações curtas entre as sílabas melódicas, o que imprime velocidade à canção, como um desabafo brutal, não fica à vontade nos alongamentos vocálicos da cantora. E ela tem dificuldade para finalizar os versos.
Mas se no caso de “Fera ferida” podemos identificar perdas na potência da mensagem da letra diante do arranjo inferior ao que a própria Bethânia já imortalizou no disco As canções que você fez pra mim, sob a sabedoria de Wagner Tiso, canções conhecidas e sempre esperadas pelo público fiel ganham novas e frescas versões, refrigerando o repertório mais passional da dona do dom.
Os pontos altos do show ficam por conta de "A dona do raio e do vento", auxiliada pelos efeitos da cenografia de Bia Lessa; o xote cheio de dengo criado para "A nossa casa", de Arnaldo Antunes e cia; a bela interpretação de "Quem me leva os meus fantasmas", canção de Pedro Abrunhosa, mais uma vez fechando um 1º ato de um show de Bethânia... Aliás, no 2º ato, quando as canções parecem mais íntimas à cantora, que deixa o teleprompter de lado e baila espontânea, o show encontra maior empatia com o público, que responde com aplausos e gritos depois do belo conjunto de sambas de rodas, ciclo iniciado e fechado com "Reconvexo".
E há a canção-poema que dá nome ao show: "Carta de amor", cuja mensagem dos versos virulentos e assustadoramente bem armados se ameniza quando a cantora declama: "Todas as cartas de amor são ridículas (...) só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas". Mais um dos conflitos vividos pela persona encenada.
O show é sim de "uma pessoa se entregando", transformando lágrima em canção. Tudo meticulosamente orquestrado pela consciência de palco de Maria Bethânia, que sabe usar cada inflexão e cada gesto a serviço do êxtase de seu público. "E é um só sentimento / Na platéia e na voz".

domingo, novembro 18, 2012

Gonzaga - de pai pra filho

Apesar de desgostar radicalmente do modo novelão de Gonzaga - de pai pra filho, um filme como esse é importante para mostrar que o Brasil não é apenas as questões que atingem o eixo RJ-SP. Há muitos mais.
Confesso que há horas em que eu
gostaria de mostrar aos meus amigos daqui (do Rio) o quão rico e complexo é lá. Fazer uma imersão, sem estigmas midiático-catastróficos, para que eles sentissem as especificidades do Nordeste e percebessem o quão tacanhos somos nas defesas por justiça e harmonia para todo o Brasil.
Luiz Gonzaga soube como ninguém sentir isso e traduzir em arte. Ele pinçou as células nervosas, os pontos luminosos do Nordeste e cantou e encheu de alegria, por dentro, o povo do Nordeste.
É uma pena que o filme se reduza ao óbvio, ao novelesco. Mas serve, do seu jeito, para aflorar questões pertinentes.
É uma pena também que as canções apresentadas no filme tenham se detido nas mais conhecidas.
De bonito, fica a canção-tema de Gilberto Gil: http://lendocancao.blogspot.com.br/2012/10/no-mundo-da-lua.html

sexta-feira, novembro 09, 2012

Filme para poeta cego

Fui assistir ao curta Filme para poeta cego cheio de expectativas. Afinal, sou um aficcionado pela poesia de Glauco Mattoso. E todas elas foram superadas.
De dominador (porque diretor), Gustavo Vinagre se permite ser dominado. Aceita os riscos e as regras do jogo do poeta. Este deslocamento de posição adensa e forja a figurativização do videobiografado Glauco Mattoso, que, por sua vez, poeta, não se deixa fotografar por completo: joga, cria, inventa.
A excelência no uso da câmera fixa e da voz (maior personagem) é de forte potência poética e também reflete, sem deixar de refratar, a persona Glauco Mattoso. No mesmo modo ser-não-ser que só esse poeta saber fazer. Gustavo capta isso e (re)monta o jogador que, em si sabendo vivente de um mundo intolerante, lança a intolerância na cara dos caretas.