Que faltam ousadia e coragem no enfrentamento de nossos mitos, isso todos nós sabemos. O excessivo suposto "respeito" ao mito, mata a potência do mito. Quando será que deixaremos de ler a obra de Cazuza apenas como mera expressão de recalque de uma rebeldia adolescente e investiremos naquilo que leva alguns críticos a comparar Cazuza a Rimbaud, por exemplo?
Os experimentos de ritmos - rock e blues; guitarra e tamborim - e de temas - "dor de corno" e sofisticação poética - ficam sempre obscurecidos pelos repetidos causos da vida de um artista obstinado à overdose de vida. Confundem-se "o espírito jovem", ser jovial, aberto ao novo com a crença de que só um pós-adolescente e imaturo poderia viver a vida que Cazuza viveu até a morte. Opta-se por cristalizá-lo como garoto-toddy, negando o seu erotismo no couro em brasa.
Creio que a obra de Cazuza fala, e toda obra deve falar, por si. Portanto, por que o contato com essa obra precisa ser sempre mediada por um discurso-narrador organizador? Basta ler as biografias e assistir aos filmes e espetáculos em sua homenagem para perceber o controle do imaginário cobrindo a personagem com luzes brandas e apolíneas. Tudo o que o artista rejeitou. "Um homem deve procurar a fruta que foi proibida", cantou.
Estes senões me servem para comentar o musical Cazuza - pro dia nascer feliz. Como um artista que enfrentou de dentro a imposição da vida burguesa - dizendo: "Eu sou da geração do desbunde. Nunca tive saco pra milico, desfile, gente com medo. Todo mundo ficava parado, mudo, anestesiado. Não dava pra fingir que não tinha nada. Pra mudar alguma coisa, a gente teve que gritar, se drogar. Ir pra rua, enfrentar nossa própria fraqueza. Era uma maneira de não se render, e não ficar careca, careta" - pode ter a trajetória contada como se se tratasse simplesmente de mais um "rebelde da MPB"? Cazuza não era o ingênuo-alegre como teimam em mostrar. Leitor voraz de poesia e ouvinte de canção popular, ele cantou que é preciso "criar a partir do feio / enfeitar o feio até o feio seduzir o belo", num gesto de quase eco a Adorno que escreveu que "na história da arte, a dialética do feio absorve também a categoria do belo em si". A obra de Cazuza transitou pelos extremos, entre a libertação do viver e o amor livre: "Cada aeroporto é um nome num papel" e "Viver a liberdade, amar de verdade, só se for a dois".
Colar as canções às situações da "vida real" do artista é reduzir sua força criativa. Claro que entendo o apelo pop e comercial que há nisso, mas é triste e paralisante ver como a visceralidade é substituída pela plasticidade do conforto dominical. Essa ânsia por certa beleza organizadora faz com que não apenas Cazuza e sim todos que gravitaram ao redor do sol que ele é, sejam risonhamente caricaturizados. Tornar as canções reféns da vida é mais fácil. E mais desrespeitoso também.
Não nego o apuro técnico do ator transfigurado no ídolo-artista-poeta. No entanto, colocar na voz da mãe encenada de Cazuza a tarefa de narrar a vida do filho - roubando deste a vocalização de canções como "Codinome beija-flor" e "Poema" - é, além de renunciar a voz própria do artista, transformá-lo num "galã bombardeado com balas de hortelã". No fim, tudo se transforma em apenas mais um divertimento simpático para dias mornos. E mais uma vez a complexidade da obra e do artista fica de fora.
Os experimentos de ritmos - rock e blues; guitarra e tamborim - e de temas - "dor de corno" e sofisticação poética - ficam sempre obscurecidos pelos repetidos causos da vida de um artista obstinado à overdose de vida. Confundem-se "o espírito jovem", ser jovial, aberto ao novo com a crença de que só um pós-adolescente e imaturo poderia viver a vida que Cazuza viveu até a morte. Opta-se por cristalizá-lo como garoto-toddy, negando o seu erotismo no couro em brasa.
Creio que a obra de Cazuza fala, e toda obra deve falar, por si. Portanto, por que o contato com essa obra precisa ser sempre mediada por um discurso-narrador organizador? Basta ler as biografias e assistir aos filmes e espetáculos em sua homenagem para perceber o controle do imaginário cobrindo a personagem com luzes brandas e apolíneas. Tudo o que o artista rejeitou. "Um homem deve procurar a fruta que foi proibida", cantou.
Estes senões me servem para comentar o musical Cazuza - pro dia nascer feliz. Como um artista que enfrentou de dentro a imposição da vida burguesa - dizendo: "Eu sou da geração do desbunde. Nunca tive saco pra milico, desfile, gente com medo. Todo mundo ficava parado, mudo, anestesiado. Não dava pra fingir que não tinha nada. Pra mudar alguma coisa, a gente teve que gritar, se drogar. Ir pra rua, enfrentar nossa própria fraqueza. Era uma maneira de não se render, e não ficar careca, careta" - pode ter a trajetória contada como se se tratasse simplesmente de mais um "rebelde da MPB"? Cazuza não era o ingênuo-alegre como teimam em mostrar. Leitor voraz de poesia e ouvinte de canção popular, ele cantou que é preciso "criar a partir do feio / enfeitar o feio até o feio seduzir o belo", num gesto de quase eco a Adorno que escreveu que "na história da arte, a dialética do feio absorve também a categoria do belo em si". A obra de Cazuza transitou pelos extremos, entre a libertação do viver e o amor livre: "Cada aeroporto é um nome num papel" e "Viver a liberdade, amar de verdade, só se for a dois".
Colar as canções às situações da "vida real" do artista é reduzir sua força criativa. Claro que entendo o apelo pop e comercial que há nisso, mas é triste e paralisante ver como a visceralidade é substituída pela plasticidade do conforto dominical. Essa ânsia por certa beleza organizadora faz com que não apenas Cazuza e sim todos que gravitaram ao redor do sol que ele é, sejam risonhamente caricaturizados. Tornar as canções reféns da vida é mais fácil. E mais desrespeitoso também.
Não nego o apuro técnico do ator transfigurado no ídolo-artista-poeta. No entanto, colocar na voz da mãe encenada de Cazuza a tarefa de narrar a vida do filho - roubando deste a vocalização de canções como "Codinome beija-flor" e "Poema" - é, além de renunciar a voz própria do artista, transformá-lo num "galã bombardeado com balas de hortelã". No fim, tudo se transforma em apenas mais um divertimento simpático para dias mornos. E mais uma vez a complexidade da obra e do artista fica de fora.
Um comentário:
Léo, você disse algumas coisas aqui muito bem ditas. Não vi o musical, mas seus comentários de certa forma já antecipam algumas expectativas minhas. Com o filme sobre ele, sinto que aconteceu algo parecido. É como se a história partisse necessariamente de um final (re)conhecido e todo o resto fosse costurado de modo a dar sentido a esse final. Parece que há receio em optar por soluções que "desrespeitam" esse modus operandi e que possam vir a "confundir" o espectador. De todo modo, acredito que todo trabalho tem méritos. Cabe a nós olhar com atenção e tirar nossas próprias conclusões. Grande abraço.
Carlos Eduardo (Uerj)
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