Chegamos
a São Paulo no sábado pela manhã ainda cheios de dúvidas sobre as atrações que
veríamos. Afinal, escolher nunca é simples, ainda mais quando todas as opções
são sedutoras. Mais tarde, com a programação na mão, descobrimos que o Palco
São João era na porta do hotel. E foi pela janela do quarto que ouvimos Lobão
começar a passar o som.
Vimos
um pouco e seguimos para o Palco Júlio Prestes, para abrir oficialmente com
Daniela Mercury e Zimbo Trio. Fazia muito tempo que eu não via um show da
Daniela. Ela continua cantando e dançando como sempre. Porém, mais politizada
que nunca. Aliás, é dela uma das imagens sonoras que guardei do evento: “quando
o bem não toma conta, o mal ocupa o espaço”, disse convidando a multidão a
enfrentar com amor as lutas pós-ditatoriais. Parte do público pedia axé,
enquanto Daniela cantava clássicos da MPB, na maioria do repertório de Elis
Regina. Atenta aos sinais, e com um acompanhamento luxuoso do Zimbo Trio,
Daniela deixou para o final do show a dança, fazendo a plateia vibrar com “A
cor da cidade”.
Palco
preparado, Gal Costa entra em cena sob aplausos e gritos. Como ir ver outra
atração? Como arredar o pé para outro lugar? Esta seria a quarta vez que
veríamos “Recanto ao vivo”. Porém, de todas as vezes, esta foi a versão com
melhor qualidade de som. A própria cantora reconheceu isso algumas vezes ao
longo do show. Foi possível perceber cada nota, cada tom. Aliado a isso o
brilho de uma Gal Costa solta, linda e graciosa com o carinho do público aceso.
Generosa, saudou São Paulo várias vezes, em especial ao lembrar após “Divino
Maravilhoso” que a Tropicália havia começado ali.
Fim de show, já devidamente orientados, fomos
caminhando até o Palco Arouche. Só então nos demos conta da dimensão do evento.
Nunca tínhamos visto tanta gente na rua. Nem nos carnavais. Depois li que mais
de 4 milhões de pessoas ocuparam o Centro de SP. Sinceramente, creio ter
passado por muito mais. O cosmopolitismo de São Paulo era 24 fotogramas por
segundo diante dos meus olhos. Gente de toda cor. Batuque de toda fé.
Chegando
às imediações do Arouche vimos que era doce ilusão pensar que conseguiríamos
chegar perto do palco do Sidney Magal. Uma multidão nos separava do cantor.
Curtimos um pouco, passamos pelo show de Rappin Hood no Palco República. Tudo
lotadaço. Pelo caminho, muitos adolescentes bêbados já caídos pelos cantos. Mas
também muita gente espalhada, procurando um lugar, um show para chamar de seu.
Continuamos
flanando até o Palco Cabaret (Copan-Ipiranga), quando chegamos lá os Frenéticos
Molhados e Croquettes cantavam “Geni e o zepelim”. Ao final da performance, um
cantor com uma arma, outro com uma bíblia e outro com uma lâmpada fluorescente
apontam o esgoto escuro de nossos preconceitos geradores de gestos de
discriminação, enquanto cantavam aos berros: “joga pedra na Geni... maldita
Geni”.
Nesse
meio tempo lembramos-nos do show da Abayomy Afrobeat Orquestra, no Palco Barão
de Limeira. Quando chegamos lá, depois de atravessar marés de gente, já havia
terminado. Mas quem já ocupava o palco era ninguém menos que Rita Beneditto. E,
como não poderia ser diferente, foi um prazer dar a volta ao mundo ao som de
Rita e seus orixás mananciais de luz e bem.
Pés,
pernas, coluna e cabeça exaustos, fomos descansar para o que ainda viria. Não
antes de ver da janela do quarto A banca (antiga Charlie Brown Jr) entrar no
palco diante do uma plateia quentíssima para homenagear Chorão.
Amanheceu.
Perdemos Gaby Amarantos e Elza Soares, Monbojó, Passo Torto. O pessoal curtia o
som do Anjo Gabriel ali na São João. Passamos pelo Arouche e Lia Sophia já
animava o público resistente e o público que estava acordando. As ruas estavam
sendo lavadas.
Passamos
pelo show dos Mustaches e os Apaches no Copan. Tomamos café. Assistimos um
pouco do show da maravilhosa Anna Gelinskas. E saímos passeando pelo Centro.
Intervenções artísticas por todos os lados. Grandes filas para os shows no
Teatro Municipal. Pessoas voando nos balanços pendurados no Viaduto do Chá. O
Anhangabaú cheio de crianças brincando. E uma estátua viva de Iemanjá me deu a
certeza de que é possível sim ter diversão e arte para qualquer parte. Aliás,
aquela estátua viva, ali, no centro de SP, talvez nem sabia o quanto de
contribuição está dando para os processos de respeitabilidade das “diferenças”.
Perto dela, uma estátua viva de São Antônio, um Jack Sparrow, uma caveira
tocando guitarra... Tudo próximo e misturado. Como deve ser.
Passamos
por vários palcos: forró, eletrônico. Voltamos a tempo do Ilê Aiyê no Arouche.
E um grande sonho de realizou. Assistir a um show do Ilê era desejo antigo. E
como foi lindo e revigorante ver a multidão cantar e dançar ao ritmo daqueles
sons tão nossos: vulcão da Bahia. Tão brasileiros: motor de luz. O cansaço já
era desumano. Visitamos a instalação “Água”, no Palácio da Justiça. Assistimos
alguns stand-ups na Sé, onde também havia um palco de luta livre com plateia
super animada.
Dali
fomos aproveitar um pouco do João Carlos Assis Brasil, no Palco Piano na Praça
(Dom José Gaspar), colado onde um corredor de barracas oferecia comidas
deliciosas dentro do projeto Chefs na Rua. Perdemos Racionais Mcs. Traí Criolo
com o Ilê. Tomara que ele me perdoe.
Ainda
vimos Marisa Orth e Cida Moreira brilharem no Palco Cabaret. E encerramos a
Virada ao som de “Vermelho”, com a exuberante Fafá de Belém que cantou o Hino Nacional
enrolada à bandeira brasileira para um público delirante. Pé quente, cabeça
fria, a esperança que fica é saber que ano que vem tem mais.
4 comentários:
Que ótimo ler seu texto. A matéria do Jornal Nacional ontem deu maior enfoque para os arrastões... ficamos chocados. Que bom que o evento obteve sucesso!!!
Pois é, Roncalli, fiquei surpreso(!?) com as notícias focadas no horror, enquanto tanta beleza havia.
Uma pena, pois isso só serve para afastar as pessoas dos centros das cidades.
O evento foi maravilhoso.
Que bom que você atendeu o meu pedido e viu Gal por mim!
Tenho aprendido muito com você a ver e respeitar beleza em artes que não são de meu agrado. Valendo-me também de um tom confessional, admito que muita vezes julgo quem aprecia determinados estilos, como se fossem uma "arte menor". Nesses momentos, sou tão menor.
Ótimo texto e ótimo evento! É bom alguém noticiar os lados positivos, pois, via de regra, a atenção incide apenas no que deu errado.
Verdade, Bruno. É um grande e árduo exercício diário respeitar as belezas que não nos agradam. Como diz os Mautner, "belezas são coisas acesas por dentro". Tenho chegado cada vez mais perto da conclusão de que uma das funções do crítico é acender tais luzes, ser iluminados por elas... a ver.
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