Em seu drama naturalista Senhorita Júlia, August Strindberg tematiza as diferenças sociais e como tais distâncias são amenizadas e/ou inflamadas pelo desejo erótico-afetivo no tecido social e em suas relações interpessoais. O autor usa os jogos implícitos às relações (de poder) amorosas como artifício cênico e ficcional da ação das personagens.
Na peça A propósito de Senhorita Júlia, José Almino e Walter Lima Jr. conseguem adaptar ao Brasil contemporâneo a disputa do desejo (erótico e hierárquico) entre patroa e subalterno. Tudo se passa na noite da vitória de Lula à presidência: êxtase dos movimentos sociais que lutam contra a naturalização das desigualdades.
E isso promove uma série de possibilidades ao texto e à ação dramática: do foco sobre certa invisibilidade da desigualdade à explicitação e reiteração de posições sociais, passando pela inadequação entre discurso e atitude.
O som da festa de comemoração dos empregados da casa de Júlia é o pano de fundo da maior parte da peça. É lá, fora dos olhos da plateia, que Júlia (filha do patrão) e Moacir (motorista) dançam juntos no meio do povo. "Hoje estamos todos festejando, sem distinção de classes", diz a Júlia de Strindberg com eco na Júlia de Almino e Lima Jr. Aliás, o som da festa - sempre em off - atravessa e quer atrapalhar as ações em cena.
"Eu me criei olhando para cima sem saber como chegar lá", diz Moacir (Armando Babaioff). "Não consigo ter paz enquanto não caio lá embaixo. No chão", diz Júlia (Alessandra Negrini). Ambos representando a atração e a repulsa do desejo: a tensão entre "um lado carente dizendo que sim e a vida gritando que não", como diria a canção.
Em cena, a beleza física e a gestualidade corporal de Alessandra Negrini suplanta sua voz pequena, correta à suposta ingenuidade de Júlia, enquanto o timbre vocal firme de Armando Babaioff alça voo aos movimentos cênicos acanhados de Moacir. Ambos no perfeito equilíbrio do par sempre em instável que o texto pede. Isso sem esquecer de Cristiane (Dani Ornellas) a outra ponta firme do triângulo.
A cenografia de José Dias funciona na intenção de mostrar como, no Brasil, a rua se imiscui em questões pessoais. E o figurino (Angèle Fróes) e a iluminação (Daniel Galván) se harmoniza no espaço criado.
Controle e liberdade armam o labirinto por onde as personagens transitam. Ninguém parece querer assumir as responsabilidades sobre si, sobre seus desejos, minando o rancor e a amargura que afastam e permitem os contatos íntimos do quarto à cozinha e vice-versa.
Sem contornos fixos, "sem características linear", diria Strindberg, às personages é permitido refletir e refratar uma gama enorme de emoções contraditórias e complementares. Tesão, tensão e insatisfação alimentam gestos, atos e omissões.
Sem dúvidas, a excelente adaptação do texto - com todos os fios muito bem trançados - é o ponto alto e o motor de A propósito de senhorita Júlia. Uma grande peça em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues até 12 de fevereiro de 2012.
quinta-feira, janeiro 26, 2012
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3 comentários:
Lendo o Programa do JB hoje, senti vontade de assistir a essa peça, principalmente para dar vazão ao meu tesão pela Alessandra Negrini rs. Nem sempre fazemos as coisas pelos motivos certos rs.
Abração!
Excelente!!
Alessandra Negrini como sempre linda e talentosa.
Falar em Strindberg me fez lembrar do curso do Victor Hugo. Vou ver a peça... e a Alessandra também... rsrsrs... Grande abraço.
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