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terça-feira, setembro 08, 2009

Orando sobre patins

No período escravocrata, no âmbito da religião, conviviam, não sem algum atrito, a ideologia do senhor e a do escravo. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro, como estudou Gilberto Freyre.
Nasciam então religiões miscigenadas como a Umbanda, com o São Jorge, católico, relacionado ao orixá Ogum, e Nossa Senhora, relacionada à Iemanjá, apontando para a transvaloração da estrutura simbólica do signo cultural trazido pelos escravos.

A canção "Feitiço" (Caetano Veloso) é um elemento importante para se pensar o sincretismo brasileiro. Ela é, de fato, uma repetição com distância crítica do samba "Feitiço da Vila", de Noel Rosa. O "Feitiço" de Caetano refrata a ideia da letra de Noel visto que, ao invés de ser um "feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém", o "feitiço" tem farofa, tem vela e tem vintém. E inclui ainda as periferias e os excluídos sociais, saudando o movimento Manguebeat, a comunidade de Vigário Geral, o funk e o Candeal de Carlinhos Brown, proporcionando um "abraço acolhedor" nas manifestações culturais dos guetos.
Já na primeira estrofe da letra, percebemos a desconstrução realizada por Caetano no modelo de Noel Rosa, para quem, acreditamos, devido à visão marginal que o samba carregava à época, era preciso retirar e "limpar" os elementos típicos das crenças trazidas: "farofa", "vela" e "vintém".
Como sabemos, o samba em sua gênese é híbrido, sincrético, miscigenado. Para Antônio Risério: "Nossa população nunca foi obrigada a amputar antepassados. É majoritariamente mestiça. E se reconhece como tal". É assim que em "Feitiço" há um jogo de palavras que se "devoram" e demonstra a antropofagia cultural em que Zabé - redução amorosa para Isabel, a princesa - devora Zumbi, maior referência de comandante dos negros, no Brasil. E vice-versa.
Obviamente, quando Caetano faz releituras do cânone, não se trata de superação. O fato é que, em tempos de discursos racialistas é bom refletir, por exemplo, que, se a umbanda é um "branqueamento" do candomblé, também é o "enegrecimento" do catolicismo, resultando, por contrapartida, em algo distinto dos dois. "Deus está solto".

Texto publicado no Jornal A União em 05/09/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Mostra Saint-Étienne Cité du Design - Objetos criados tendo como foco a sustentabilidade do planeta. Até 27/09 CCBB.
= Mostra Casa Cor - O requinte da Casa Cor deste ano homenageia Burle Marx. Os ambientes estão muito bem distribuídos. No Jockey Club até 13/10.
= Exposição Madeleine Colaço - Belo e delicado trabalho de tapeçaria. Até 11/10 Caixa Cultural.
= Dança Suite Funk (Companhia Urbana de Dança) - A escolha da trilha é boa.
= Musical Hairspray - O país do carnaval merece uma apoteose como esta montagem dirigida por Miguel Falabella. Simone Gutierrez é um absurdo! Certamente a grande revelação do ano. No Teatro Casa Grande até 04/10.
= Show Jardim de Cactus (Dado Villa-lobos) - Som pesado e boas letras.
= CD Certa manhã acordei de sonhos intranquilos (Otto) - A melhor coisa que ouvi até agora em 2009. Valeu esperar tanto tempo por um trabalho (precioso e desigual) do Otto, artista que sabe entender a hibridação da cultura brasileira como ninguém.

3 comentários:

Ricardo Moreira disse...

Lúcida interpretação do Feitiço de Caetano: adorei a passagem: "Obviamente, quando Caetano faz releituras do cânone, não se trata de superação. O fato é que, em tempos de discursos racialistas é bom refletir, por exemplo, que, se a umbanda é um "branqueamento" do candomblé, também é o "enegrecimento" do catolicismo, resultando, por contrapartida, em algo distinto dos dois. "Deus está solto".

seu blog tá cada vez melhor. beijos

roncalli dantas disse...

Muito bom o texto! E o fragmento que Ricardo pinçou diz tudo. eu até diria que a umbanda é o exu das religiões, está na encruzilhada.
Um Deus sem raiz, solto... - é tão poético!!!

Anônimo disse...

Interessante blo. Prazer.