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sábado, setembro 19, 2009

Não Madame, não Satã

João Francisco dos Santos, o Madame Satã, mito da boemia carioca, é uma das figuras mais complexas e significativas para se pensar a sociedade brasileira. Temido e consagrado, ele colocou em xeque a moral de um longo período que o país viveu sob ditadura. Infelizmente não é este o Madame Satã que nos é apresentado na peça que leva seu nome, dirigida por Marcelo de Barros, em cartaz no Teatro do Sesi, no Rio de Janeiro. Logo na entrada do teatro, uma exposição com objetos pessoais do "homenageado", de precária comunicação visual (não há legendas em nenhuma foto ou objeto) e o mau uso das peças, já parece um prenúncio do que se vai assistir.
O espetáculo "Madame Satã", da Companhia Teatro Arte Dramática, estimula o preconceito e reforça a falta de informação sobre a figura pretensamente representada. As afetadas e caricatas atuações, que beiram o ridículo e desconstroem a força do mito, e as personagens criadas de forma rasa e pouco evocativa, decepcionam o espectador que procura algo mais do que uma sucessão de termos chulos que, gritados com insistência em certas cenas, conseguem adesão de apenas parte da plateia que ainda acredita neste expediente como forma de divertimento.
Há cenas constrangedoras, mal conduzidas e longas, esgarçando qualquer sentido contextual, e atores que não sabem o texto, assinado pelo diretor. Um texto, diga-se de passagem, construído sobre aspectos e marcas que se repetem a exaustão, buscando o riso fácil do público e eliminando qualquer possibilidade dramática.
Os movimentos e a (quase) inexistência de objetos de cena parecem pensados para uma peça de formatura de curso teatral, no pior sentido que isso possa ter. Somado a isso, a coreografia, se é que podemos chamar assim, dos dois narradores é primária, com gestos de falsa e desnecessária eloquência.A filipeta diz que o espetáculo foi montado em Paris, pela Universidade de Nice e, por mais inacreditável que possa parecer, já foi assistido por mais de 50 mil pessoas. Acreditamos que seja pelo exotismo de uma "macumba para turista ver", como rejeitava Oswald de Andrade, ao se referir à arte brasileira. Tudo no "espetáculo" parece propositadamente estimular um certo prazer sarcástico e preconceituoso de quem quer, efetivamente, manter-se alheio às discussões sobre preconceito e respeito à diferença.
O pernambucano Madame Satã não merecia isso.

Texto publicado no Jornal A União 19/09/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Exposição Argentina Hoy - Irretocável mostra do que de melhor há na contemporânea arte feita na Argentina. Até 22/11 no CCBB.
= Filme Up - Certamente um dos melhores filmes do ano. A comunicação visual é incrível e a personagens são muito bem construídas. A metáfora de "carregar a casa nas costas" versus a decisão de se libertar do "peso" do passado é trabalhada com texto impecável.
= Filme Drag me to Hell - É um bom suspense "classicão", não deve agradar ao público acostumado aos (d)efeitos dos filmes do gênero.
= Dança Appris par corps - A Cie. Unloup pour l'homme apresenta uma performance suave e agressiva nos momentos exatos. A relação quase simbiótica dos dois performans é decisiva na leveza dos movimentos que estão muito além dos gestos pesados e sem introspecção que costumeiramente se vê em espetáculos em que a força física é exigida.
= Show Pros que estão em casa (Tony Platão) - O setlist do show é muito bem montado, possibilitando Platão mostrar as várias competências de sua voz.
= Teatro Nervo craniano zero - É tudo tão canastrão que chega a ser divertido.
= Livro O filho da mãe (Bernardo Carvalho) - O cruzamento das narrativas, dos sentimentos, das perdas e conquistas, do verossímel ou não continua sendo o mote do autor, que agora usa a metáfora das ilhas (esferas) afetivas para construir sua história.
= Livro Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (Herom Vargas) - Pesquisa e boa leitura sobre a mistura antropofágica efetivada pelo movimento MangueBeat.

3 comentários:

Moreira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Moreira disse...

olha Davino, sua crítica da peça do Satã está tão bacana, que até parece audiovisual! O seu texto me lembra uma crítica que fiz a um espetáculo de balé daqui de JP em que dizia que os bailarinos pareciam que só sabiam realizar o "movimento mata-barata", que consitia em: flexionar o corpo até chão, procurar a barata de olhos arregalados e mãos espanadas, bater no asoalho 2 ou 3 vezes, subir, levantar o braço lentamente, uma rodadinha a meio corpo, um pulinho, uma corridinha, um bater de palmas e repitir tudo de novo até a exaustão. O pior é a gente ver isso como se fosse "muderno". Nem o filme do Aïnouz eu achei que fez jus a Madame. Adorei. Bjs e concordo com vc sobre UP, um filme maravilhoso, que trata as questãos de vida, morte e sonho como poucos fizeram e que as entrelinhas são melhores que as linhas.

Anônimo disse...

Está ai uma outra visão: http://acapa.virgula.uol.com.br/cultura/peca-sobre-madame-sata-estreia-no-rio-de-janeiro/3/17/9097

A ausência de cenário e os figurinos simples são compensados por jogos de luzes e uma interpretação convincente e emocionante do malandro mais conhecido da primeira metade do século XX. Segundo os organizadores, o espetáculo já foi visto por mais de 50 mil pessoas nas 300 vezes em que foi apresentado. No hall do teatro, o público confere ainda uma singela exposição com alguns objetos pessoais de Madame Satã.

O fio condutor da história são dois amigos imaginários de Satã, que vão narrando a sua vida desde o nascimento até momentos antes de sua morte, em 1976. João Francisco dos Santos nasceu em Pernambuco no ano de 1900. É filho de uma ex-escrava com um humilde pernambucano do interior. Ainda na infância, foi trocado por um jumento pela mãe e chegou a ser escravizado. Mais tarde, em busca de uma vida melhor, mudou-se para a Lapa, no Rio de Janeiro. É neste período que está o foco da história de João que, antes de adotar o famoso codinome Madame Satã (retirado de filme homônimo de Cecil Demille), era mais conhecido como "Caranguejo".

Apesar de considerado marginal e perigoso, vemos o lado humano de João, que, no fundo, era uma pessoa frágil. Seu jeito agressivo e contundente era a única maneira que tinha de lutar contra um preconceito tripo: o fato de ser pobre (além de analfabeto e nordestino), negro e homossexual. Entre uma confusão e outra, geralmente causada por pessoas que insistiam em zombar de sua condição, ele acabava sendo preso. Isto se tornou uma constante em sua vida. "A polícia me adora", diz em tom de deboche um dos diálogos. Em alguns momentos, o público ainda se diverte com a interpretação caricata do personagem, mas nem por isso menos autêntica. Já de início, nosso protagonista aparece dançando "Tico-tico no fubá", de Carmem Miranda.

É um enredo que fala sobre sonho e superação. João queria ser artista e, por isso, decide abandonar a malandragem para fazer shows na esperança de se tornar uma figura conhecida. A fama veio, ironicamente, de outra maneira: na imagem de "vagabundo" que já conhecemos com mais de 5 assassinatos e 3 mil brigas no currículo. O texto é bastante enxuto e em muitos momentos apresenta tiradas filosóficas, como "A justiça é injusta" ou "Ninguém muda nesse mundo, as pessoas são o que são". Apesar dos pesares, Satã é considerado hoje um dos ícones da cultura marginal do século XX. E como diz o espetáculo: "não haverá Lapa depois de mim...". De fato, a boemia carioca nunca mais foi a mesma.