Desde o seu primeiro trabalho, quando ainda assinava Zélia Cristina, Zélia Duncan tem demonstrado a consciência e o engajamento com a palavra cantada e mesmo com a palavra escrita, usando por vezes recursos eletrônicos de última geração, sem perder de vista a tradição.
Complicado? Para ela parece que não, pois são nesses contatos (ou seriam entre-lugares?) entre clássico e contemporâneo, Deus e Diabo, dor e elegância que se cria a atmosfera do disco Pré-pós-tudo-bossa-band.
Este trabalho de Zélia é um exemplo de como ser lúcido, sem ser politicamente chato. Longe do panfletarismo, o disco mistura o "mundo inteiro" e apresenta da primeira a derradeira canção – termo usado aqui no sentido definido pelo crítico e teórico Luiz Tatit, para quem o compositor é um malabarista equilibrando letra e melodia – um instigante projeto de crítica e avaliação do comportamento humano em tempos “pós-modernos”, tencionado também pelo encontro de vários gêneros e estilos musicais.
Na primeira faixa, de Lenine e Duncan, que dá título ao disco, os versos “todo mundo quer ser de novo o novo / O ovo de pé, o estouro” fica clara a intenção irônico-reflexiva do eu-lírico em relação ao narcisismo galopante de nossa época. Senão lembro também dos versos “todo mundo quer ser da hora / tem nego sambando com o ego de fora”. “Ego” está dentro da palavra “nego” e é onde, metaforicamente, deveria ficar. Porém, dado o contexto atual, o eu-lírico observa a inversão de posição.
Há ainda uma forte presença, essencialmente nas letras, da fanopéia de Pound, ou seja, as imagens criadas dão o tom esperado. É só observar a letra de “Mãos atadas”, de Simone Saback, dedicada à sempre presente Cássia Eller.
Para os que buscam a passionalização, as letras de “Inclemência”, “Eu não sou eu” e “Não” vão além da expectativa, com composições impactantes.
Particularmente gosto de “Carne e Osso”, de Duncan e Moska, na qual os versos, “A alegria do pecado / às vezes toma conta de mim” e “Perfeição demais / me agita os instintos / quem se diz muito perfeito e é tão bom não ser divina”, questionam a humanidade do divino e a divindade do humano, de maneira bem humorada.
Destaco também a letra de “Benditas”, de Mart’nália e Duncan, e os versos “bom é não saber o quanto a vida dura / ou se estarei aqui na primavera futura / posso brincar de eternidade agora / sem culpa nenhuma”. E a canção “Vi, não vivi”, de Itamar Assumpção e Christiaan Oyens. Além, claro da música de Itamar Assumpção para o poema “Dor elegante”, de Paulo Leminski.
Esta semana Zélia Duncan lançou o DVD com o show homônimo. Está tudo lá, e muito mais, entre regravações e novidades, com algumas modificações aqui e ali nos arranjos, próprias para apresentações ao vivo, mais com a interpretação sem medo do risco sempre perceptível.
E no DVD destaco “Milágrimas”, canção absurdamente linda e comovente de Itamar Assumpção e Alice Ruiz, interpretada com a participação especialíssima de Alenis Assumpção, filha de Itamar, cujo verso “A cada mil lágrimas cai um milagre”, que, se a princípio soa cafona, exorciza qualquer baixo-astral.
Mas minha canção preferida, a que já embalou alguns bons momentos de reflexão interior, e a que, acredito, define bem a concepção deste trabalho é “Distração”, de Duncan e seu inseparável parceiro de trabalho Christiaan Oyens. Transcrevo a letra:
Se você não se distrai, o amor não chega / A sua música não toca / O acaso vira espera e sufoca / A alegria vira ansiedade / E quebra o encanto doce / De te surpreender de verdade
Se você não se distrai, a estrela não cai / O elevador não chega / E as horas não passam / O dia não nasce, a lua não cresce / A paixão vira peste / O abraço, armadilha
Se você não se distrai, / Não descobre uma nova trilha / Não dá um passeio / Não ri de você mesmo / A vida fica mais dura / O tempo passa doendo / E qualquer trovão mete medo / Se você está sempre temendo / A fúria da tempestade
Hoje eu vou brincar de ser criança / E nessa dança, quero encontrar você / Distraído, querido / Perdido em muitos sorrisos / Sem nenhuma razão de ser
Olhando o céu, chutando lata / E assoviando Beatles na praça / Olhando o céu, chutando lata / Hoje eu quero encontrar você
Enfim, Pré-pós-tudo-bossa-band, CD (estúdio), ou DVD (show ao vivo) é antes de tudo uma proposta de parceria com a vida, para aproveitar dela o que de melhor pode oferecer. Aponta que mesmo as coisas e situações “más” tem importância dentro da engrenagem, basta estar distraído para não deixar o acaso sufocar e atento a sua filosofia individual.
E haja adjetivos para "qualificá-lo".
2 comentários:
Leo, nunca gostei da Zelia Duncan, mas após ler seu texto me proponho a ouvir com mais atenção, embora eu confesse que não acredito que vou mudar de idéia. Depois te digo.
Abraços!
Leo, também concordo com Bruno Lima. Não curto muito a voz de Zélia Duncan já que o tom baixo da voz dela me causa incômodo. Ainda assim, existe algumas músicas dela que são muito boas e não consigo imaginar na voz de outra pessoa como "Por que não pensei nisso antes", "Alma"... Fora isso, o show dela é muito bom. Ela é muito boa de palco! É inesquecível pra mim quando ela, em pleno show, parou a música porque uma pessoa atendeu o celular pra conversar lorota - claro que dou toda razão pra ela!
Abração!
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