Fiquei me devendo comentar os encontros que mais gostei: entre Adriana Calcanhotto e Eucanaã Ferraz; Arnaldo Antunes e Elke Maravilha; Jorge Mautner e André Valias. Todos artistas que admiro, pois cada qual demonstra extrema lucidez em seu projeto individual de arte.
Dentre esses pinço Elke Maravilha e explico.
Confesso que fui mais por causa de Arnaldo Antunes (escrevo sobre ele outro dia). Mas foi Elke quem me surpreendeu e arrebatou com sua presença devastadora.
Quando criança, lembro daquela figura “estranha” como jurada do Cassino do Chacrinha. Sempre me chamava a atenção e eu ria com seu jeito todo próprio de se expressar. O tempo foi passando e ficando cada vez mais difícil vê-la na TV.
Hoje, conhecendo melhor sua história, sei que com seu estilo inovador e único, já na década de 6O despontava como símbolo de transgressão e liberdade. No Errática, Elke me impressionou pela força que sua presença impõe – pomba-nossasenhora-gira no palco – seu lado mais conhecido.
Mas a surpresa maior foi assistir uma deusa pagã declamando poemas em russo, francês, inglês, alemão e grego, além de algumas línguas indígenas. Depois ousando traduções livres, demonstrando extrema erudição e sensibilidade, consciência política e humana, especialmente nos comentários que teceu sobre diversas questões do Humano, entremeados por experiências de sua vida.
Os textos variaram desde Homero, passando por Lorca, Drummond, Borges, desse leu o belo Fragmentos de um Evangelho Apócrifo:
“Desventurado o pobre em espírito, porque debaixo da terra será o que agora é na terra.
Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto(...)
Feliz o que não insiste em ter razão, por ninguém a tem ou todos a tem.
Feliz o que perdoa aos outros e o que se perdoa a si mesmo(...)
Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que tua paz.
Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma e é árduo, ou impossível, fixar a fronteira que os divide(...)
Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
Eu não falo de vingança nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão(...)
Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
Felizes os felizes.”
E, emocionada (precisando parar duas vezes) declamou a melancólica letra de Assum Preto, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira:
Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata
Num vendo a luz, ai, canta de dor
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.
Foi uma noite "maravilha" tanto pelos textos lidos, como pela forma como eles foram lidos e comentados.
Num tempo em que muitos se tornam caricaturas de se próprios, Elke Maravilha deu exemplo de que, por mais que a máscara da personagem esteja apegada à cara, é possível se desvencilhar dela.
Encerro com o justo texto-homenagem que Itamar Assumpção e Wally Salomão fizeram para a ela:
Elke Maravilha
Elke mulher maravilha
Uma negra alemã um radar
Um mar uma pilha
Elke mulher maravilha
Uma branca maçã avatar
Um luar uma ilha
Elke mulher maravilha
Uma deusa pagã um sonar
Um altar uma trilha
Elke mulher maravilha
Uma prenda Ogã um pilar
O ar mãe e filha
3 comentários:
É, preciso frequentar mais o circuito cultural da cidade. Eu não esperaria tanto dela... Teve uma época que eu achei que ela era travesti!!!
Abraço
Sinceramente tb não esperava tanto! Foi uma grata surpresa.
Abraço
Salve Leo!
Infelizmente muitos só a conheciam do Chacrinha, como aconteceu também com Aracy de Almeida. Com o fim do programa ela meio que saiu de cena.
Abraços!
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