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quarta-feira, maio 02, 2007

A representação do paraíso II

Dias 23 e 24 de abril, aconteceu o Colóquio Rumos Literatura, dentro do programa Rumos Itaú Cultural, aqui no Rio. Dentre outros assuntos debatidos, a questão “o que torna um autor cânone” merece destaque, para mim, talvez porque depois de (re)visitar Camões eu tenha ido (re)visitar Homero e Eça de Queiroz, cânones da nossa Literatura Universal, explico:
No Canto V, da Odisséia, Ulisses que se encontrava tristonho, mesmo vivendo em uma ilha paradisíaca com a bela Calipso que lhe prometera a imortalidade, prefere voltar para Ítaca, sua terra e onde está sua família, e começa a construir uma jangada para o retorno (óbvio que faço aqui uma leitura bastante reducionista).
Ogígia, ilha de Calipso, é um lugar prazeroso, os campos Elíseos da terra. Porém apesar da vitalidade, resultante da boa vida, do corpo de Ulisses, sua alma não tem paz. Ele prefere sua terra à imortalidade do corpo e ao prazer sem fim, ou seja,
é melhor envelhecer seu corpo ao lado da sua mulher, a querida Penélope, na pedregosa Ítala, fugindo da morte psíquica.
Em contrapartida, Eça de Queirós, baluarte do Realismo português, publica em 1897 o conto A perfeição, uma “adaptação” para o formato de conto, feita a partir do Canto V, do texto homérico. O conto, como define Júlio Cortazar, com algumas controvérsias, está para a fotografia, por sua narrativa curta, focada em poucos personagens e num determinado tempo e espaço, com total utilização estética da limitação, eliminando as situações intermediárias, assim como o romance está para o cinema.
Ogígia, - “de crescimento admirável, a vinha os pimpolhos estende / da gruta côncava em torno, a vergar com o peso dos cachos. / Água mui clara promana de quatro nascentes vizinhas, / que juntas surdem, mas abrem caminhos por partes diversas. / Prados macios em torno se viam, com aipo e violeta, / cheios de viço. Até um deus imortal que ali viesse, por certo se admiraria com tal espetáculo, na alma folgando.” - é a representação do ideal a ser alcançado.
Porém, influenciado pela estética simbolista, que nega a anterior da busca alucinada pela forma perfeita trazendo ao homem uma realidade mais subjetiva, Eça nos sugere que é a procura da felicidade, com todas as dificuldades e vulnerabilidades que torna o homem feliz, chegando a sugerir também que a perfeição cansa.

Ao declarar: “Morro de saudades da morte”, o Ulisses queirosiano demonstra que sente falta das coisas do quotidiano comum e que foram esquecidas pela busca de uma vida perfeita. Uma das intenções de Eça de Queirós, como de alguns intelectuais de sua época, é chamar a atenção para a superação da visão racionalista e mecanicista do universo. O símbolo implica na expressão indireta de um significado que é impossível dar diretamente, que é essencialmente indefinível e inesgotável, ficando claro o porquê de Eça de Queiroz resgatar o texto de Homero.Ulisses, abandona a perfeição de um mundo físico ideal e vai à busca da essência do ser humano, aquilo que ele tem de mais profundo e comum: a alma e as inquietações dela. A perfeição está nas angústias e prazeres do dia-a-dia, nas imperfeições da vida comum? Isto é, é o caminhar que torna a vida perfeita, em detrimento do chegar? Será isso que estes dois cânones da nossa Literatura Universal quiseram nos mostrar?
Talvez essa seja uma das características de um cânone: levantar questões que não se limitam no tempo e espaço, levantar questões universais.

Em tempo: Voltando ao campo literatura, é preciso absorver, mas também é preciso discutir o cânone, isso em todos os campos do saber, foi esta inquietação e a visão crítica que fizeram Haroldo e Augusto de Campos reposicionarem, não só Gregório de Matos, mas também Sousândrade e Pedro Kilkerry, na história da nossa Literatura Brasileira.

9 comentários:

Anônimo disse...

Leo...
Eu sempre acreditei que a felicidade está no caminhar ... a percepção de que tudo é ensinanento e proporciona nossa evolução nos faz contemplativos..sem que com isso deixemos de ser protagonistas de nossa própria história...
beijo

Anônimo disse...

A questão do cânone sempre me inquietou e ainda não encontrei uma resposta, se é que há uma resposta. Ao final do texto você deixa em aberto a possibilidade de uma obra se tornar canônica por tratar de assuntos universais que perpassam tempo e espaço. É, sem dúvida, uma possível resposta, mas que não me cala outras tantas perguntas.

Pensando nesta tua resposta como uma solução, lembrei-me que obras que também tratam de assuntos universais que nos acompanham desde sempre não figuram no cânone. Deveríamos, então, acrescentar a questão estética como condição para um texto estatutariamente compor o cânone.

A poesia concreta, presente ao cânone dentro das obras de alguns poetas, tem uma estética bastante particular. Pergunto-me se no caso do concretismo podemos falar de temas universais como os postulados anteriormente. Li em uma antologia um poema que, no centro de uma folha em branco, havia centralizado dois parênteses apenas. No pé da página havia uma nota que dizia algo mais ou menos assim: Coloque o seu nariz entre os parênteses e aspire a poesia. Consigo encerrar nele uma questão apenas estética, talvez conceitual, sem com que isso, entretanto, ele deixe de ser canônico.

A alternativa encontrada para adequar uma obra ao cânone, ou seja, suas características estéticas, associadas ou não a um tema universal, não me satisfaz. Tomando essa possibilidade como verdadeira, nova questão surge. Os ismos todos que temos dentro da história da literatura e mesmo dentro da história da arte são conceitualmente diferentes entre si. Um texto machadiano e um texto rosiano, por exemplo, não podem ser lidos sob a mesma ótica estética, mas ambos pertencem ao cânone. A partir de que momento o que norteava um texto de Machado perdeu importância, deixou de ser novidade, de receber o mérito de entrar para o cânone e o mesmo mérito foi dado para um texto de Rosa? Esse exemplo não é dos mais adequados porque são dois escritores que não escreveram em períodos subseqüentes, evidenciando, dessa forma, a ruptura de uma estética para outra, mas a essência da problemática aqui está. Outra questão a reboque da primeira: quem determina o encerramento de um movimento literário e o surgimento de outro que passa a ocupar o que então era cânone? Para essas perguntas não tenho respostas, mas mais perguntas.

Anônimo disse...

É angustiante saber qual é o papel do leitor dentro dessa ciranda. Pode ser ele o agente que torna necessária a mudança no que se fazia em termos literários e artísticos, instigando escritores e artistas a mudarem suas formas de representação, como pode também ser ele apenas espectador das apresentações que lhe são oferecidas.

Manuel Bandeira, por exemplo, tem poemas que podem se enquadrar em várias escolas literárias, até mesmo o concretismo. Sua longa vida e produção textual permitiram-lhe vivenciar várias mudanças de ismos. Então outra possibilidade para a criação de um novo momento literário se apresenta, e a meu ver o mais provável, a saber, as próprias mudanças sociais por que passam escritores e leitores que necessitam de novidades. Acabamos de ler ou reler Nove noites, de Bernardo Carvalho, e não há como ele, ou qualquer escritor do final do século XX e início do XXI, produzir o mesmo discurso publicado na década de 90, muito menos retroagir mais no tempo. Talvez seja enfim uma mudança natural na estética que ocorra e que faz com que mudemos de viés literário, mudando assim de estilos dentro do cânone.

É possível que este seja o ponto em que podemos sair do texto, isto é, saber como sociolingüisticamente o texto sofre alterações e, a partir delas, compreendê-lo e situá-lo no momento de sua criação, mas não deixar que isso interfira na leitura e análise do texto em si. Este, concordamos, encerra-se nele mesmo, não necessita de qualquer interfência extratextual.

Perguntas que eu mesmo lancei ao ar deixei sem resposta, mas como falei, não as tenho.

Anônimo disse...

Quando fiz a afirmação de "assuntos universais" ligados ao conceito de cânone, quis intigar o meu leitor a fazer exatamente a leitura que voce fez. Tô pasmo! Você foi no ponto, pois, realmente não quis dar uma resposta, quis gerar perguntas.

Sem dúvida alguma, a estética é um dos fatores determinantes para a "canonização", concordo, porém, concordo mais ainda que é cânone aquilo/aquele que um grupo o considera como tal. Claro, não estou desmerecendo o valor de Machado ou Rosa (que adoro), mas entende o que digo? Nossa sociedade não consegue pensar por si, é sempre preciso que um grupo diga "isso é bom", pra poder realmente ser bom. Claro que cada contexto histórico terá seu escritor preferido, aquele que melhor está "antenada", para citar uma expressão do crítico inglês Ezra Pound, com a ração humana naquele momento, e a poesia concreta cumpre sim seu papel quanto a isso. Aliás acredito que ainda hoje não entendemos qual era a das vanguardas.

Não vejo um autor substituindo um anterior, mas sendo agregado, por várias questões ao cânone daquele momento e unindo-se aos anteriores no cânone de forma mais ampla, como corpus literário de uma determinada cultura, entende? O teu exemplo de Manoel Bandeira é fabuloso, pra exemplificar isso.

Claro, como citei no texto do blog, veja os casos como Gregório de Matos, Sousândrade... se não fosse os irmãos Campos não teríamos a fortuna que estes artistas nos deixaram. É preciso, e isso é o mais complicado dentro de uma cultura cada vez mais massificada, discutir o cânone.

Anônimo disse...

Claro, como citei no texto do blog, veja os casos como Gregório de Matos, Sousândrade... se não fosse os irmãos Campos não teríamos a fortuna que estes artistas nos deixaram. É preciso, e isso é o mais complicado dentro de uma cultura cada vez mais massificada, discutir o cânone.

Quanto ainda ao concretismo, fico pensando nas pessoas que ainda hoje não o consideram como poesia e simplesmente rejeitam discussão sobre o tema. Ontem, vendo o Arnaldo, neo-concretista, percebi o quanto ele é engajado, não o engajamento burro e panfletário que os críticos da hora querem, mas de uma forma que instiga o leitor a pensar a discordar até, mas pensar... coisa difícil, não?

Óbvio que não chegaremos a uma resposta e, te confesso, prefiro as perguntas, as respostas dão uma sensação de fim, as perguntas instigam o buscar sempre... rsrsrs

Anônimo disse...

Você tem razão quando diz que não somos nós leitores que fazemos o cânone, somos dele "vítimas". Só não sei se concordo que nossa sociedade não sabe pensar. Me ocorreu agora o fenômeno Paulo Coelho, que é execrado por uma "elite literária" e é cultuado pelos leitores "leigos", por assim dizer. Essa mesma sociedade, influenciada pelo cânone, não deixa de lê-lo. Nesse sentido, aliás, Paulo Coelho merece uma análise sob esse aspecto. Por um lado ele é sucesso de vendas em diversos idiomas, por outro ele é visto com maus olhos por leitores mais argutos. Soma-se a isso o fato dele ser imortal. O fenômeno que é o Paulo Coelho merece uma análise à parte.

Talvez o que nos faça pensar que somos uma sociedade sem uma intelectualidade própria seja o meio em que vivemos, ou seja, estamos inseridos em uma cultura de massa, em que a televisão, e mais atrás o rádio e o computador são os grandes formadores de opinião. Levando em conta que a programação das rádios e o que é vinculado na rede orbitam sobre a programação televisiva, esta é, em última análise, quem dá o norte para a sociedade.

Anônimo disse...

Há um ponto paradoxalmente positivo e negativo na TV. Ela transporta para a telinha inúmeras adaptações de nosso cânone literário, sobretudo nas mini-séries da Globo. Não é preciso dizer que os preços dos livros, a falta de educação e de incentivo à leitura propiciam o afastamento de leitores e de possíveis novos leitores. Com as mini-séries, e em última análise, com a televisão, inúmeras pessoas têm acesso aos temas universalmente debatidos dos quais já tratamos. Mas se por um lado há essa aproximação, por outro justamente ela afasta os leitores das obras uma vez que já a "leram" nas telas, e nesse caso, seja televisão, cinema ou qualquer outra adaptação.

Não é possível, entretanto, encerrar essa questão tão pontualmente, pois há também quem se interesse em ler textos literários por travarem conhecimento com a mesma em sua forma adaptada. Já ouvi pessoas comentando que sequer sabiam que determinado filme era baseado em uma obra literária e que isso as instigaram a procurar a fonte. Tenho consciência, no entanto, que, diante desse universo, as adaptações, sejam televisivas, sejam cinematográficas, não são suficientes para arregimentar mais leitores, causando, a priori, cada vez mais um distanciamento.

Eu gosto muito do concretismo. Não tenho ainda uma opinião sobre o que você falou se entendemos ou não as vanguardas. Talvez falta um maior distanciamento temporal para que possamos fazer uma análise mais isenta e embasada. Tenho a impressão que depois do romantismo e realismo ainda não conseguimos fazer isso e arrisco a incluir o modernismo. Para você ter uma idéia, o modernismo não estava incluído na grade da graduação da UFF. Perto de nos formarmos, pedimos a uma professora que desse uma matéria optativa sobre o modernismo.

Você tem toda a razão quando fala que não vê "um autor substituindo um anterior, mas sendo agregado, por várias questões ao cânone daquele momento e unindo-se aos anteriores no cânone de forma mais ampla, como corpus literário de uma determinada cultura".

Uma leitura crítica é fundamental para quem quer realmente estudar literatura. Estava sentindo falta disso e a pós vem servindo para isso, pois, como lhe falei, estava há muito tempo distante não apenas da academia, mas também de uma leitura mais sistemática, seletiva e orientada.

Anônimo disse...

Aceitar o biografismo para mim será muito difícil, como voce, entendo, mas sou da opinião lançada pelo, mais uma vez cito Ezra Pound, "reconhece-se um mau crítico quando este faz análise da biografia do autor e não da obra". Claro que há a questão do contexto, Anatol Rosenfeld, no livro "texto/contexto", explica isso muito bem, ou seja, determinados contextos influenciam em determinadas formas de escrituras, mas até quanto? Há de se dosar as duas partes e no fim prevalecer a obra, o texto como resultado da análise.

Acredito que me expressei mal, não quis dizer que a sociedade não pensa, pelo contrário, quis apenas ressaltar a massificação das coisas e leituras, entende? Além do mais, como voce bem lembrou, o fenômeno Paulo Coelho merece muita atenção, pois é o povo dizendo aos grupos que definem o que é cânone que estes estão errados, ou não? Não sei, resta saber se daqui a trinta, cinquenta anos Paulo Coelho ainda será lembrado, enfim, são muitas questões... rsrsrs

Anônimo disse...

Léo, adorei o texto sobre a releitura de Eça do episódio de Ulisses e Calipso na Odisséia, vc sabe que tenho uma predileção particular por este tema. É interessante notar que, na própria Odisséia, já existe a questão da não-vida, da imortalidade estéril, da morte em vida que Ulisses teria ao lado da deusa, em face de toda a simbologia da descrição homérica (não preciso repetir o que vc já conhece, o trabalho sobre o Canto V da Odisséia foi um dos que mais me deu prazer elaborar, vc sabe... assim como lembra das histórias que o cercam... rsrsrs). Calipso, no papel de Grande Deusa, acena com a perfeição divina e pede ao herói que se esqueça de sua identidade, de seu retorno, de sua pátria, da esposa e dos seus, enfim, submeta-se a um sacrifício em honra dela... O mais fantástico é ver como Eça não mudou os fatos, mas, mesmo assim, construiu uma obra nova, que dialoga diretamente com os conflitos de seu tempo e toca em temas universais. Vc, habilmente, discorreu sobre essa questão. Maravilhoso!