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segunda-feira, junho 29, 2009

Muso Híbrido

"O jogo é fato mais antigo que a cultura". São com estas palavras que Johan Huizinga inicia o livro Homo Ludens e, a partir deste argumento, afirma que o jogo é uma categoria absolutamente primária da vida, tão essencial quanto o raciocínio (Homo Sapiens) e a fabricação de objetos (Homo Faber). E assim denomina o elemento lúdico como base do surgimento e desenvolvimento da civilização.
Huizinga caracteriza o jogo como uma "atividade voluntária", distante da "vida corrente" ou "vida real" e, consequentemente, uma atividade temporária, com finalidade autônoma, na busca de satisfação. Em outras palavras, o jogo é exercido dentro de certos limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana.
A vida racional pode interferir nos sentidos de tal forma que ela extingue e contraria a tendência própria e particular deles. A automatização prejudica a receptividade dos sentidos pela atividade do pensamento, antecipando – preconceitos – o que os sentidos deveriam aguardar. Como resultado, temos o empobrecimento da sensibilidade pela imposição de forma no tempo/lugar errado. Por outro lado, a sensibilidade pode exuberar de tal maneira que sufoque a espontaneidade e a autoafirmação da razão. Aí o homem fica sem rumo e se perde numa multiplicidade sem ordem.
Para Friedrich Schiller, o impulso lúdico se efetua entre o impulso formal (mutável) - "parte da existência absoluta do homem ou de sua natureza racional, e está empenhado em pô-lo em liberdade" - e o impulso sensível (temporal) - "parte da existência física do homem ou de sua natureza sensível, ocupando-se de submetê-lo às limitações do tempo e em torná-lo matéria".
O jogo, assim, torna o homem completo, pois a alternância dos estados se articula no homem levando ele a jogar para (sobre)viver. Ou seja, o cultivo adequado de ambos os aspectos da natureza humana é que assegura o equilíbrio interativo que em sua dinâmica complementar fundamenta a unidade da realização cultural do homem. Ideia que corrobora com o pensamento de Huizinga.
Michael Jackson, com seu pan-multi-pluri corpo, indefinido, inconformado, black and white, macho e fêmea, menino e homem, simboliza uma (des)(h)umanidade que caminha para a consciência da não busca por essencialismos, pai de conflitos infrutíferos. O corpo de Michael Jackson é puro impulso lúdico, sem função aparente, mas despoletador de nossa incapacidade de compreensão do humano.

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Peça Hamlet (Aderbal Freire-Filho) - Muitos gritos e caricaturas, pouca introspecção. Na vontade de inovar a peça soa um modelo gasto de montagem. Cenário e figurino são bons.
= Peça Regurgitofagia (Michel Melamed) - As ideias são excelentes. Angustiante como quando nos deparamos com nossas limitações.
= Peça Anti-Dinheiro Grátis (Michel Melamed) - Na tentativa de fazer uma anti-peça, Melamed acabou por anti-"agradar" seu público. Se ele não podia colocar a peça no palco (por motivos judiciais) poderia ter sido mais claro com quem esperava ver o espetáculo original.
= Peça Homemúsica (Michel Melamed) - Da "Trilogia brasileira" é a que tem melhor acabamento de direção e concepção.
= Filme A festa da menina morta (Mateus Nachtergaele) - Confesso que eu esperava mais - despudor. Nachtergaele mostra que aprendeu bem o ofício com os diretores com quem trabalhou. As cenas líricas cortando cenas mais dramáticas são uma excelente sacada.
= Filme Divã (José Alvarenga Jr.) - Os "tons pastéis" da fotografia são exagerados, mas tencionam a linearidade que a protagonista rejeita na vida.
= Exposição Virada Russa - Excelente oportunidade para ver raridades e obras fundadoras e fundacionais de novos tempos. Kandinski, Lariónov, Maliévitch, Chagall e outros até 23/08 no CCBB-RJ.

quarta-feira, junho 17, 2009

segunda-feira, junho 15, 2009

O Estrangeiro Jorge Mautner

A certa altura do disco "Eu não peço desculpa" Jorge Mautner sentencia: "Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista". Esta expressão parece ser uma chave de entendimento da obra desse artista que soube sacar a relação amalgamada entre "Jesus de Nazaré e os tambores do Candomblé", pelo filtro da sombra do vulto de Zaratustra.
Assim, o livro "O filho do holocausto" é mais do que as memórias de infância e adolescência do "vigarista Jorge". O livro apresenta a trama total da gênese de uma obra impregnada pela dança das instabilidades do mundo. Nele, Mautner se permite ficar exposto aos raios da kriptonita e demonstrar como é possível entender a complexidade do Brasil, pela via da hibridização, ou amálgama, como ele prefere chamar, dos signos.
Como vampiro e supremo tarado, adepto da antropofagia oswaldiana, percebe-se que a obra de Mautner luta contra essencialismos com um amor flutuante acima do bem e do mal, mesmo seguido pela sombra do passado, e talvez por isso mesmo. É possível sentir lampejos de vida para a compreensão do demasiadamente humano no Brasil, onde a moral mantem-se por um fio dental. Pergunta-se: Maior liberdade ou maior repressão? Os dois, amalgamados. Samba jambo, samba japonês, feitiço indecente e vodu.
Jorge Mautner olha demais para o amor, mesmo sabendo, e talvez por isso também, que amor não é aquilo que a gente deseja que ele seja. Mautner ensina que viver sem grilo é possível, mesmo com a cricrilar da memória afetiva. Ao exemplo de Nietzsche em "Ecce homo", Mautner passa em revista suas inúmeras influências literárias e filosóficas e faz exaltações. Além de evocar sua chegada ao Brasil como filho do holocausto e da alegria de ter tido uma adepta do candomblé como babá. Tudo com linguagem bastante singular. Ele joga o anzol para pescar o sol e sabe (e como ele sabe!) que tudo que pesca é um rouxinol, que canta para causar um riso de amor.
No livro "O filho do holocausto", diante da emergência do sujeito, Mautner - profeta que sempre prega no deserto - experiencia o espaço incorporando a sabedoria do que é cotidiano e simples. Esconde as lágrimas negras, vez por outra, e tem a certeza da impossibilidade de ter paz no coração, por viver embriagado de paixão. Astronauta da saudade eletrônica, Jorge Mautner, sabedor de que a cor negra é um acúmulo de azuis, em "O Filho do holocausto", é um pensador contra a ideologia da agonia. "Belezas são coisas acesas por dentro / Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento", canta.

Texto publicado no Jornal A União em 13/06/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Filme Otto; Or, Up With Dead (Bruce La Bruce) - Imprescindível metáfora de nossos dias, em que um jovem (suposto) zumbi se questiona se vale a pena morrer quando já estamos mortos. Os recursos de sobreposições pornográficas dão o clima exato deste meta-filme.
= Filme Angels & Demons (Ron Howard) - A presença de Ewan McGregor entrega muita coisa. O filme vale pelas belas locações.
= Livro Culturas híbridas (Nestor Garcia Canclini) - A história da hibridização das culturas é contada e exemplificada em linguagem acessível.
= Livro Proteu ou a arte das transmutações (Luís Carlos de Morais Junior) - Pioneiro trabalho acadêmico sobre a obra de Jorge Mautner.

segunda-feira, junho 01, 2009

A agonia do cisne

Para Patrice Pavis "o performer é antes de tudo aquele que está presente de modo físico e psíquico diante do espectador". A afirmação é bastante categórica, mas serve para ilustrar um olhar sobre a performance "I’m not here ou A morte do cisne" de André Masseno.
De fato, a coreografia "A morte do cisne" foi criada é 1907 por Michel Fokine para a bailarina clássica-romântica Anna Pavlova. De 2004, "I’m not here ou A morte do cisne" – assim, com duas opções de título para que o espectador escolha uma, ou não – é a tentativa feliz de escapar dos podres poderes que teimam em querer aprisionar o corpo em movimentos estanques. André é ninfa, cisne, Ana e Michel: macho e fêmea esboroados.
Tudo é muito branco. Branco que inspira pureza e verdade, mas também frio e palidez da morte. O trabalho abre com balões de ar brancos cobrindo o chão do espaço cênico, no que se sugere uma festa que aconteceu, ou acontecerá. A dúvida cobre nosso olhar que é instante a instante desautomatizado pela presença física e psíquica do performer.
Dos balões que se enroscam no corpo em meio aos movimentos, aos outros que estouram enquanto Masseno tenta amarrá-los ao corpo, tudo é incerto e agônico. Porém, um bolo branco não deixa dúvidas de que estamos comemorando o aniversário da coreografia criada por Fokine para Pavlova. Há até um sacana "happy birthday" a la Monroe.
O espectador fica diante de um corpo cheio de informações, memórias fragmentadas e histórias conectadas com movimentos e pensares outros que não "apenas" os exigidos comumente tanto numa performance, quanto numa coreografia de balé clássico. O trânsito entre os movimentos corporais e sonoros e a palavra falada faz André Masseno repensar, adensar, e condensar referências e questionamentos que enriquecem sua obra.
Para se criticar algo é preciso conhecer o objeto alvo da crítica muito bem. Masseno enfrenta o desafio com rigor e apresenta uma homenagem que se confunde com uma revisão crítica. Quando ele questiona se o cisne em cena (apresentado por Pavlova) é o mesmo imaginado por Fokine, ele tenciona todo um mecanismo histórico de efeito crítico e intervenção estética. Quem está em cena? "I’m not here" dá pistas.
Não há personagens. Em "I’m not here ou A morte do cisne" André Masseno põe na roda criativa uma pomba-gira branca que nos arranha com a agonia da dúvida entre ser e estar (n)aquilo que se é, que quer ser ou que forças estranhas determinam que seja.

Texto publicado no Jornal A União em 30/05/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Filme Fälscher, die (Os falsários) - IMPERDÍVEL!!!
= Filme Star Trek - Efeitos e roteiro em perfeito equilíbrio.
= Filme Synecdoche, New York - Philip Seymour Hoffman somatiza nova Iorque com todas as repercussões que isso pode ter. Total esboroamento de arte e vida do personagem.
= Filme X-Men origins: Wolverine - Um belo presente para os fãs do personagem.
= Exposição Legado Sagrado - Excelente oportunidade para ver o trabalho etnográfico e artístico de reconstituição da história dos índios norte-americanos feito por Edward Curtis. Caixa Cultural RJ até 28/06.
= Show Os Matutos - Pesquisa sobre chorinho e canção é incrivelmente bem utilizada pelo grupo.
= Show Revirão (Jorge Mautner) - Um prazer imenso ouvir as canções e filosofia deste grande pensador da nossa cultura na canção.
= Show Orquestra Contemporânea de Olinda - Ótimo trabalho de percussão e pesquisa. Destaque para o "possuído" Gilú.
= Peça Quebra-quilos - Ótimo trabalho engajado do Coletivo de Teatro Alfenim sobre fatos da história do interior da Paraíba. É sempre muito bom ver Sôia Lira em cena.