Na letra, Caetano cria uma cadeia metonímica de significantes para traçar a imagem de três travestis que se expõem numa praça qualquer. Ele explora as especificidades do travesti como figura da noite e como produto de exportação do Brasil. Diz o final da letra: “Três travestis / Três colibris de raça / Deixam o País / E enchem Paris de graça”.
Ao relacionar o corpo montado do travesti – figura que ameaça, mina e trinca nossa perspectiva arcaica de sociedade – à figura do colibri, Caetano dialoga com a trilogia que o escritor franco-cubano Severo Sarduy escreveu sobre o tema da transexualidade, “Cobra”, “Maitreya” e “Colibri”.
Nas três novelas, Sarduy demonstra sua noção de escritura como “travestimento”. Os planos de intertextualidade, ou seja, a interação entre diferentes linguagens textuais, são análogos aos planos de intersexualidade.
Se em “Cobra”, ele leva suas personagens ao submundo territorial e agressivo da transexualidade, mas também ao universo dos rituais budistas, com uma sobreposição de questões e imagens contemporâneas, em “Maitreya” Sarduy aprofunda as referências budistas e apresenta um “Buda do futuro”, resultado de uma complexa condensação de significantes. Já em “Colibri” o escritor mergulha numa zona decadente da Cuba pré-revolucionária, onde vive a personagem-título do livro, um dançarino de cabaré que seduz, pelo hibridismo sexual, os freqüentadores da casa.
Na criação neobarroca de Sarduy cada palavra parece ter uma imagem como suporte. Os registros do espaço erotizado que o travesti ocupa vão do escatológico ao puro lirismo. A coexistência de significantes masculinos e femininos, de uma “mulher com falo”, arranha a imagem do macho, “esse travesti al revés”, como definiu Sarduy, em seu livro de ensaios “Escrito sobre un cuerpo”.
Tanto a trilogia sarduyana, quanto o frevo de Caetano mostram como um tema cheio de arestas insuspeitadas pode servir à criação artística, sem panfletarismos ou moralismos, ambos esterilizantes.
* Texto publicado no jornal A União/PB em 31/05/2008.
Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:
= Filme The Chronicles of Narnia: Prince Caspian – Um espetáculo de elementos cenográficos e efeitos especiais.
= CD Francisco, Forró y Frevo (Chico César) – Com alguns elementos interessantes aqui e acolá, o novo trabalho soa como “mais do mesmo”.
= Exposição A Bahia de Jorge Amado – Fotografias de Marcel Gautherot, José Medeiros e Edu Simões, entre outros, do excelente acervo do Instituto Moreira Sales, criam o imaginário ideal para a obra do escritor de Gabriela, cravo e canela, livro que está completando 50 anos.
= Livro O sol e a morte, de Peter Sloterdijk – Em forma de diálogo, o livro serve como introdução à obra e ao pensamento do autor de Crítica da Razão Cínica e de A Mobilização Infinita. Além de revelar as motivações existenciais e metafísicas da investigação para compor a sua trilogia das Esferas.
Um comentário:
Adorei!!! É de uma lucidez e de uma profundidade marcante, considerando os limites do jornal... Incrível como um texto curto pode abordar tão bem um objeto, de forma sucinta e certeira. Parabéns! É dos melhores textos seus q li! A gente nota que o tema pode render laudas e laudas, mas vc apresenta fundamentos basilares na análise do tema, em uma escrita bem fundamentada, mas tb divertida... Isso é mt importante, pois o texto não só ensina, mas tb entretém, da forma mais positiva possível... Não tem jamais aquele ranço de texto acadêmico, sabe como é? Ao msm tempo, tem a objetividade e a análise cuidadosa que um texto acadêmico deve ter!
E a linguagem é mt bem trabalhada. A sua linguagem tb agrega imagens! Mt bonito msm!
Parabéns, Léo! Fico mt feliz de ver q vc cresce a cada dia! Pq vc merece isso e mt mais, meu amigo!
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