Ao invés dos camarotes refrigerados das cervejarias da Sapucaí, é nos puleiros populares e gratuitos da Av. Presidente Vargas – famosos pelo esgoto exposto do Mangue – que Michel Melamed coloca o público para assistir ao desfile de Adeus à carne. O roteiro é estruturado a partir dos quesitos que norteiam os desfiles das escolas de samba, mas em nada, ou em tudo, lembra um luxuoso espetáculo.
O espetáculo vai se construindo por pedaços, quase esquetes, que aparentemente não se conectam. Porém, essa falsa impressão logo é desfeita quando o espectador começa a perceber que está diante de um grande painel, algo como Guernica, onde tudo é potência de dor, miséria e indignação do artista.
Tudo é metáfora: enquanto o carnaval da Sapucaí estetiza a alegria, Adeus à carne estetiza o real. No lugar do samba-enredo, o sussurro; do brilho, o fosco; do colorido, o branco e preto. O autor borra o brilho que cega os espectadores comuns, porque teleguiados, e mira no universo ao redor: no lixo que sustenta o lamê. E, mais que tudo, reflete e refrata a truculência disseminada no país.
A violência – o som da bateria transformada em tiros – com que Michel Melamed aborda a festejada pujança da sexta economia do mundo é de uma brutalidade que beira o absurdo exatamente por negar o sublime, por mirar única e exclusivamente no trágico.
Há algo mais trágico do que o símbolo da escola de samba não poder sambar? Como sabemos, o casal de mestre-sala e porta-bandeira bailam e não podem deixar o samba sambar. É por aí que Melamed entra. Mas não revelo aqui a solução cênica utilizada para não estragar o impacto.
Se no carnaval é que o Brasil respira e extravasa, Melamed oferece o irrespirável, o desconforto, o brutal pré-pós luzes da Sapucaí. Ele foca naquilo que a TV não mostra, ou mostra demais, como a super lente que flagra o choro (a emoção?) dos componentes do desfile. É tudo imagem, pose sob luz, em um processo muito bem compreendido por Adriana Ortiz, que assina a iluminação da obra.
Se a alegria é também a consciência de que a dor faz parte do jogo, em Adeus à carne a dor não tem contrapartida: tudo é esforço e suor, sem perspectiva de restauração.
É eliminada qualquer jubilação: é o trágico sem sublime: tudo dói e arde. Confete por confete, o maior espetáculo a céu aberto da terra, é apresentado naquilo que ele tem de mais cruel: sem alegorias, nem máscaras – a pele por traz da pintura – pele negra esbranquiçada e branca enegrecida.
Livre pensador/atirador, Melamed não deixa de fora do seu carnaval a descendência das procissões católicas. Lá está o São Cu num recurso cênico aquém do pensamento visceral do autor, e que remete às travessuras estéticas dos anos sessenta, mas sem comprometer o resultado do ritual à deusa carne.
Além do próprio Melamed, os corpos em cena de Bruna Linzmeyer, Pedro Monteiro, Rodolfo Vaz, Thalma de Freitas e Thiare Maya promovem o sambicídio estético: transformam a crítica e o atrito sociais em estética.
Adeus à carne é o sacrifício da carne, representado com precisão cirúrgica pelas passistas que sambam, sem deixar de sorrir, movidas pela dor da cera quente de velas acesas que choram sobre seus corpos.
Outro momento de extrema complexidade (e perplexidade) é quando Thalma de Freitas canta um prismático mashup de canções que se interligam pela palavra “tristeza”. Aliás, a trilha sonora, sob direção musical de Lucas Marcier e Fabiano Krieger, é originalíssima: o suporte fundamental para a agonia que Melamed estraçalha (curto-circuita) com sua profusão de ideias.
A cenografia e os objetos de Bia Junqueira promovem os avanços e empecilhos dos movimentos dos atores-trans-foliões em cena. E o figurino de Luiza Marcier aponta para a luta entre o esfarrapo e o excesso dos amores vãos da festa.
Adeus à carne é o carnaval nunca visto, ou que de tão presente não queremos ver: em sua radicalidade, Melamed brocha a fofura, gela os ânimos e aterroriza até nossos pensamentos menos sublimes sobre a festa que não é mais festa: é máscara sem recheio.
Em cartaz no Sesc Ginástico até 15 de abril.
O espetáculo vai se construindo por pedaços, quase esquetes, que aparentemente não se conectam. Porém, essa falsa impressão logo é desfeita quando o espectador começa a perceber que está diante de um grande painel, algo como Guernica, onde tudo é potência de dor, miséria e indignação do artista.
Tudo é metáfora: enquanto o carnaval da Sapucaí estetiza a alegria, Adeus à carne estetiza o real. No lugar do samba-enredo, o sussurro; do brilho, o fosco; do colorido, o branco e preto. O autor borra o brilho que cega os espectadores comuns, porque teleguiados, e mira no universo ao redor: no lixo que sustenta o lamê. E, mais que tudo, reflete e refrata a truculência disseminada no país.
A violência – o som da bateria transformada em tiros – com que Michel Melamed aborda a festejada pujança da sexta economia do mundo é de uma brutalidade que beira o absurdo exatamente por negar o sublime, por mirar única e exclusivamente no trágico.
Há algo mais trágico do que o símbolo da escola de samba não poder sambar? Como sabemos, o casal de mestre-sala e porta-bandeira bailam e não podem deixar o samba sambar. É por aí que Melamed entra. Mas não revelo aqui a solução cênica utilizada para não estragar o impacto.
Se no carnaval é que o Brasil respira e extravasa, Melamed oferece o irrespirável, o desconforto, o brutal pré-pós luzes da Sapucaí. Ele foca naquilo que a TV não mostra, ou mostra demais, como a super lente que flagra o choro (a emoção?) dos componentes do desfile. É tudo imagem, pose sob luz, em um processo muito bem compreendido por Adriana Ortiz, que assina a iluminação da obra.
Se a alegria é também a consciência de que a dor faz parte do jogo, em Adeus à carne a dor não tem contrapartida: tudo é esforço e suor, sem perspectiva de restauração.
É eliminada qualquer jubilação: é o trágico sem sublime: tudo dói e arde. Confete por confete, o maior espetáculo a céu aberto da terra, é apresentado naquilo que ele tem de mais cruel: sem alegorias, nem máscaras – a pele por traz da pintura – pele negra esbranquiçada e branca enegrecida.
Livre pensador/atirador, Melamed não deixa de fora do seu carnaval a descendência das procissões católicas. Lá está o São Cu num recurso cênico aquém do pensamento visceral do autor, e que remete às travessuras estéticas dos anos sessenta, mas sem comprometer o resultado do ritual à deusa carne.
Além do próprio Melamed, os corpos em cena de Bruna Linzmeyer, Pedro Monteiro, Rodolfo Vaz, Thalma de Freitas e Thiare Maya promovem o sambicídio estético: transformam a crítica e o atrito sociais em estética.
Adeus à carne é o sacrifício da carne, representado com precisão cirúrgica pelas passistas que sambam, sem deixar de sorrir, movidas pela dor da cera quente de velas acesas que choram sobre seus corpos.
Outro momento de extrema complexidade (e perplexidade) é quando Thalma de Freitas canta um prismático mashup de canções que se interligam pela palavra “tristeza”. Aliás, a trilha sonora, sob direção musical de Lucas Marcier e Fabiano Krieger, é originalíssima: o suporte fundamental para a agonia que Melamed estraçalha (curto-circuita) com sua profusão de ideias.
A cenografia e os objetos de Bia Junqueira promovem os avanços e empecilhos dos movimentos dos atores-trans-foliões em cena. E o figurino de Luiza Marcier aponta para a luta entre o esfarrapo e o excesso dos amores vãos da festa.
Adeus à carne é o carnaval nunca visto, ou que de tão presente não queremos ver: em sua radicalidade, Melamed brocha a fofura, gela os ânimos e aterroriza até nossos pensamentos menos sublimes sobre a festa que não é mais festa: é máscara sem recheio.
Em cartaz no Sesc Ginástico até 15 de abril.
5 comentários:
Ótimo texto, Léo! Fiquei muito a fim de assistir ao espetáculo.
Grande abraço!
PS: Não pude ir à defesa do Cláudio, depois entreo em contato para conversarmos e agendarmos um bate-papo.
Que texto esse ...eu assisti o espetaculo, o Michel é surpreendente sempre!
Muito boa e atenta a sua crítica!
Só tenho dúvidas se vou conseguir "consumir" a peça teatral. Será que "guento" tanta crueldade?
Acabei de ver a peça e posso dizer que seu texto não deixa nada escapar.
Michele sempre surpreendente o que eu acho que é para desfrutar com a família e ver então que queria ir comer em um lugar agradável e fui com minha famíliaa la caballeriza, como costumamos comer na tenda sempre entrega.
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