Pesquisar neste blog

segunda-feira, maio 31, 2010

Darwin, Mozart e a trilha sonora da mente

No momento em que o interesse pelos estudos sobre música e canção aumenta no Brasil, o livro de Daniel J. Levitin, “A música no seu cérebro – a ciência de uma obsessão humana”, lançado agora aqui, merece atenção e leitura sublinhada e crítica.

Diretor do Laboratório de Percepção, Cognição e Especialização Musicais da Universidade McGill, em Montreal, Canadá, Levitin vem desenvolvendo pesquisas referenciais sobre uma área pouco investigada: a relação íntima entre cérebro e música. O autor, sintomaticamente baseado na evolução darwiniana, parte da tese de que a música distingue o homem dos outros animais. E que a música é determinante na formação da linguagem, da cultura e do pensamento.

Para responder perguntas tais como o modo que o prazer (e o gosto) musical se inscrevem em nós, Levitin, fugindo das elucubrações subjetivas, vai desde a ressonância magnética de cérebros em contato com diferentes sons, e de artistas durante o trabalho, até medições da afinação de pessoas comuns e de cantores.

O professor não está sozinho na empreitada. Segundo ele mesmo afirma, além de pessoas já conhecidas no meio – Oliver Sacks e Robert Jourdain, por exemplo – há pelo menos 250 pesquisadores que hoje trabalham nisso ao redor do mundo. O que distingue Levitin é o corpus utilizado. Enquanto a maioria usa apenas a música erudita, ele investiga também, e isso torna o livro mais próximo do leitor comum, a música cotidiana, aquela que toca no rádio. A canção nossa de cada dia.

“A música no seu cérebro” trata, de forma generosa e acessível, sem perder o foco científico, a presença da música na vida, no humano e no cérebro. Aproveitando o conhecimento que adquiriu como produtor musical, cita exemplos que vão de Mozart a Eminem, para refletir sobre como as músicas doces, amargas e agridoces determinam quem somos e as nossas atividades.

Durante a leitura do livro de Levitin, vários fragmentos de leituras vêm à mente. Ele permite inferências e interferências que auxiliam no entendimento. Deve, assim, ser lido com pontuais ligações intertextuais. Citamos aqui pelo menos duas.

Quando o autor, músico formado pelo Berklee College, pensa sobre o modo que os compositores (neosereias na era da reprodução técnica) podem investir em dado aspecto, a fim de conseguir um determinado efeito no ouvinte, Levitin se aproxima das conclusões alcançadas por Octávio Paz, para quem o poeta utiliza o ritmo já existente no mundo e em si para compor. Paz nota que, mais que um acordo, há um acorde nos diálogos universais.

Em “O arco e a lira”, Paz sente e analisa o ritmo como conceito primordial do fazer poético. Ou, mais além, Paz fala do mundo como poema e, como tal, provido da repetição rítmica que é a invocação e a convocação do tempo original. Há um tempo interior e individual que movimenta o sujeito e influencia sua existência. Daí a atenção que Levitin oferece à respiração (estimulante), enquanto símbolo e signo do ritmo, daquilo que nos torna aptos à música, e que faz parte da natureza humana e foi/é fundamental para a evolução da espécie.

Sem ritmo não há poema, logo, não há vida. Levitin, por sua vez, postula claramente que “a formação e então a manipulação de expectativas está no coração da música e é realizada de um número incontável de maneiras”. Até porque, com o passar do tempo, nosso cérebro passa a “esperar” determinado som, cabendo ao artista produzi-lo.

O bom artista, portanto, é aquele que consegue ter a sensibilidade de captar a necessidade do ouvinte e, através dos recursos técnicos, criar a experiência musical desejada. Reforçando o conceito de poeta apresentado acima e defendido por Octávio Paz.

A outra referência, ainda para entender o “tempo primordial”, vem do pensamento de Peter Sloterdijk. Em seu “Esferas I”, este filósofo pós-nietzschiano pensa o ventre materno (microesfera) como esfera sonora pré-natal. A mãe canta a vida para o bebê. É aqui que, para Levitin, em contrapartida, o gosto musical é detonado. Nossas preferências musicais começam a ser formadas antes de nascermos, além de este período determinar a construção da qualificação musical.

Porém, Sloterdijk assinala que o desenvolvimento da capacidade crítica do espaço compartilhado leva o sujeito, enquanto adulto, a fechar os ouvidos. Dito de outro modo, temos aquilo que Levitin chama em seu livro de “ponto de corte”, ou momento para a aquisição de novos gostos na música.

“A música no seu cérebro” quer deixar claro, e consegue, que o ser humano gosta, porque precisa, de ser cantado e que a vida só faz sentido assim. Apesar de em alguns momentos carregar nas tintas, haja vista sua paixão pelos itens analisados, o autor transparece consciência e competência ao lidar com um objeto que, como Nietzsche vaticinou, é a afirmação da existência. Aliás, fechamos o livro com as palavras de Nietzsche, em carta a Peter Gast, ressoando em nossa caixa acústica interior: “A vida sem música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio”. E perguntando-nos: há vida fora da música?

Texto publicado no jornal O Globo (Caderno Prosa & Verso), em 29/05/2010

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

- Filme Olhos azuis – A fronteira (o não-espaço, o lugar da perda de identidade) muito bem apresentada.

- Filme Teta assustada – Roteiro e história extremamente originais.

- Filme Quincas Berra D’água – O Quincas do filme não é o Quincas do livro, mas igualmente bem construído (emocionante e bem humorado).

- Filme Chlóe – Um registrado da absurdidade para a qual o destempero emocional pode nos levar.

- Filme Os homens que não amavam as mulheres – Aterradora mirada sobre a insensibilidade humana (nossa) diante da alteridade.

- Filme Mary and Max – A história de uma amizade singularíssima. Lindo e arrebatador.

- Peça Sade em Sodoma – A imagética de Sade se dilui entre cenários e “atmosfera temporal” mal executados.

- Peça A gaiola das loucas – Os números de dança são impecáveis.

- Peça Avenida Q – A mais bem humorada, encenada e atuada peça dos últimos tempos.

- Exposição Press World Photo 2010 – Imperdível! Na Caixa Cultural-RJ.

6 comentários:

iracema de alencar disse...

Muito bom e no Globo. Parabens! Abraços

Unknown disse...

Vc tá muito chique, viu! Publicando no Globo! VC fecha!

bjos !

Neli Neves disse...

Muito lindo seu texto, Leonardo!

Ando lendo alguns autores que pensam a música, como por ex: John Backing que estudou os venda na África do Sul. Você conhece? A abordagem dele é outra, mas vejo ligacoes entre ele e Levitin.
Colo aqui parte do resumo que fiz de "How musical is man?"

(...)a música tem muito a ver com sentimentos e experiências humanas em sociedade e seus padrões são gerados frequentemente por explosões de uma cerebração inconsciente.

Para Blacking, a maioria dos processos essenciais da música podem ser encontrados na constituição dos corpos humanos e nos padrões de interação com os outros em sociedade (...)

Um abraco.
Neli

William Rogério disse...

Parabéns pelo texto publicado n'O Globo, meu jovem ( por sinal, muito bom o texto). E que venham outros... E parabéns pelo blog tb. Abraço! William Rogério

Carlos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ana lobato disse...

Parabéns pela publicação no Globo. Apreciei seu comentário sobre a citação de Levitin "Há um tempo interior e individual que movimenta o sujeito e influencia sua existência". Ira Altshuler, psiquiatra norte-americano (1943)definiu o Princípio de ISO (igual, compatível) "O musicoterapeuta deve usar um estímulo compatível com o tempo mental ou ritmo biológico do indivíduo". A partir deste princípio, Benenzon (1988) criou as cinco Identidades Sonoras utilizadas na Musicoterapia. Abraços
Ana Lobato (Juiz de Fora)