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quarta-feira, abril 22, 2009

Sereias II

Retomando o pensamento do texto anterior, o autocanto (aquele que nós próprios cantamos para nos constituir como sujeitos) pode ser observado como uma forte característica no individualismo moderno. A sociedade demonstra cada vez mais as inúmeras ambições individualizadas.
Aliado a isso surge nossa busca permanente por imunidades à dor, à solidão. Para Peter Sloterdijk, as esferas (espaços de convivência) que criamos são sempre tentativas de "sistemas imunológicos". Como a família, o Estado, etc, mas não estamos imunes ao trágico da vida. De fato, nossas "bolhas" estão sempre prontas para explodir.
Num mundo onde a visualidade é fundamental e o distanciamento da oralidade é bastante perceptível, num trânsito do acústico ao óptico, o homem parece cada vez mais condenado à errância – um ser sem domicílio fixo. Portanto, sujeito da mobilidade, como investiga Lúcia Santaella, no livro "Linguagens Líquidas na era da Mobilidade". Há a descrença nos grandes relatos – que outrora privilegiaram o universal, o atemporal – em detrimento do particular, do mutável e do casual. Tempos da descentralização da subjetividade. Porém, na busca por imunidade, surge, em contrapartida, a procura pelo silêncio, para o qual parece que não estamos preparados.
Kafka, por exemplo, afirmou ser até possível que alguém tenha escapado do canto das sereias, mas de seu silêncio, certamente jamais. No conto "O silêncio das sereias", Kafka recria a travessia de Ulisses e aponta porque ele não sucumbira, não só ao canto das sereias, como também, ao mais difícil, segundo ele, ao silêncio delas. O Ulisses de Kafka "confiava plenamente no punhado de cera e no emaranhado de correntes e, em inocente alegria quanto a seus meiozinhos, navegou em direção às sereias".
Mas, se o canto das sereias era mortífero, seu silêncio era aterrador. O não-canto nos destrói. E o que cantam as sereias? Completando o que já esboçamos no texto anterior, assim como em Homero elas cantam a Odisséia dentro da "Odisséia", as sereias cantam a vida dentro da vida.
Portanto, se o primeiro motivo da alegoria das sereias consiste em interpretar o triunfo de Ulisses como uma forma emergente de racionalidade sobre o mito, ainda precisamos pensar sobre o silêncio, num espaço cada vez mais cheio de ruídos e sons, que nos agradam porque nos cantam.

Texto publicado no Jornal A União em 18/04/2009

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Peça Rock'n'roll - Elenco afinado, com uma direção nem tanto, mas o resultado merece ser visto, tanto pelo excelente texto de Tom Stoppard, quanto pela forma da abordagem do tema em si.
= Peça História de teatro e circo - A Cia. Carroça de Mamulengos segue firme com o propósito de manter as tradições do teatro mamembe, de forma alegre e politizada.
= Filme Tony Manero - Roteiro e atuações excelentes, mas as tomadas de câmeras, exageradamente soltas, perturba e desfoca a atenção.
= Livro Era uma vez um casal diferente (Lúcia Facco) - Resultado da tese de doutoramento, o livro apresenta um trabalho vigoroso sobre como tratar a diversidade sexual na escola, através da literatura.
= CD Zii e Zie (Caetano Veloso) - É Caetano em busca do ruído perfeito.

2 comentários:

gabriela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
gabriela disse...

Desisti do "novo Caetano" depois que o vi num vídeo no youtube, cantando "Come as you are", me decepcionei. Mas ouvi dizer que na postagem anterior ouviste muito Little Joy, me viciei também.

Enfim, belo blog, belas palavras.


P.S: conterrâneo!