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quinta-feira, setembro 25, 2008

Missas paralelas

Entre as muitas homenagens ao centenário de morte de Machado de Assis, destaco o lançamento do livro “Capitu mandou flores”, organizado por Rinaldo de Fernandes, em que quarenta escritores brasileiros recriam textos machadianos. Dentre eles merece atenção o conto “Juca”, de Amador Ribeiro Neto, que já havia sido publicado em uma esgotada antologia de contos, intitulada “O amor com olhos de adeus”. Com o novo livro, o público tem a oportunidade de ler o “canto paralelo”, construído sobre referências, fragmentos e reminiscências da obra machadiana.
Mais do que um diálogo entre textos, “Juca” é uma interpretação crítica e atualizadora de “Missa do galo”. Ele mantém praticamente a mesma estrutura inicial do conto de Machado. Enquanto o jovem Nogueira de “Missa” vai à capital para os “estudos preparatórios”, o narrador de “Juca” também é um jovem que se desloca do interior para a cidade grande, porém para fazer compras de fim de ano e ver um pouco de teatro.
Os narradores apresentam ao leitor dissimulações, que encobrem a objetividade das histórias, dando um tom de incerteza aos fatos. Como os dois contos são rememorações, há passagens que tentam transparecer “lapsos de memória”, devido à distância temporal dos fatos. Assim, logo se percebe que os supostos esquecimentos são intencionais, uma vez que existe algo que ambos os narradores preferem esconder.
Nogueira concentra sua narrativa na figura sedutoramente ambígua de Conceição, esposa do escrivão Menezes que o hospeda. Em “Juca” a história é focada no diálogo entre o narrador e o tio deste, um cara “muito legal”, mas que “tinha uma coisa meio misteriosa na sua vida”. Entretanto, a ambigüidade presente na personagem feminina de “Missa do galo” e no tio de “Juca” nada mais é do que uma idéia forjada pelos narradores. As intenções e os sentidos das palavras vão além do que está escrito.
É provável que o ponto central dos textos seja a transição para a vida adulta e o despertar do desejo, registrados pelo olhar dos narradores que começam a perceber no outro, muito mais do que a “segunda mulher do escrivão” ou o “tio muito legal”.
Através de um texto sofisticado, onde não há imitação ou negação, Ribeiro Neto constrói a narrativa que homenageia o conto machadiano, mesmo que de forma enviesada, introduzindo acentos novos numa obra que ainda se oferece como importante referência para a produção literária que se faz hoje.

Texto Publicado no Jornal A União-PB 20/09/2008

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Ópera La BohèmeAo optar pelo uso de projeções de quadros impressionistas como cenário, a direção, mesmo com a atuação de solistas competentes, desviou a atenção do público. Uma pena!
= Exposição Rubens e seu Ateliê de Gravuras – Oportunidade de ver as gravuras deste artista barroco, nos diversos
âmbitos temáticos de uma obra cheia de dobras e detalhes. A mitologia greco-romana e a alegoria, bem como o retrato, a paisagem, as séries históricas e a ilustração. Até 19/10 no Centro Cultural dos Correios.
= CD Sou (Marcelo Camelo) – Primeiro disco solo do ex Los Hermanos retoma projeto inicial do grupo. Experiência com a guitarra, mistura de gêneros... Um trabalho "noturno" em que a solidão arrasta o eu-lírico por sonoridades e paisagens diversas.
= CD Intimidade entre estranhos (Frejat) – Terceiro disco solo de Frejat soa como mais do mesmo. Apesar do excelente mote - as paredes de papel que nos cercam, as esferas individuais que são insistentemente estouradas - o som e as letras, que vez por outra grudam no ouvido, dão continuidade às baladas dos discos anteriores, sem grandes novidades.
= Dança Meu Prazer (Márcia Milhazes) – O sobrenome deveria dizer muito, mas a irmã da artista plástica Beatriz Milhazes apresenta um espetáculo confuso, sem direção, em que quatro bailarinos repetem os mesmos "movimentos" do início ao fim do espetáculo ao som de músicas deslocadas.
= Dança Q'eu Isse (Rui Moreira) – Em uma atuação maravilhosa o excelente Rui Moreira incorporava no palco a força da tradição e da história afro. Muito distante de levantar bandeira, a coreografia - unida à luz correta e a trilha sonora (de Milton Nascimento) - emocionaram pela consciência técnica dos bailarinos.

sexta-feira, setembro 12, 2008

Trois

Há situações em que a emoção tende a se sobrepor ao senso crítico. Digo isso para tentar “justificar” meu deslumbramento sobre o show de Caetano Veloso e Roberto Carlos, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Passados alguns dias, ainda guardo todas as sensações. O espetáculo celebrou os 50 anos da bossa nova com repertório visitando a obra de Antonio Carlos Jobim. Não deu pra segurar. Durante a apresentação, as lágrimas rolaram algumas vezes. Eu sabia que estava presenciando um grande momento. E foi muito mais que isso.
Quando apagaram as luzes e abriram as cortinas do belo teatro, ao som da “ouverture” da trilha sonora de “Orfeu da Conceição”, lá estavam três representantes de significativos momentos de nossa música popular. Jobim (em espírito) e a bossa nova, Roberto e a Jovem Guarda, Caetano e a Tropicália. Um delicioso "ménage à trois".
Roberto Carlos mostrou desenvoltura impecável. Atitude de rei. Contrastando com Caetano que algumas vezes, já havia reparado em outros shows, passa a impressão de estar pouco a vontade no palco. Mas foi lindo vê-lo cantar “Caminho de pedra”, o quase aboio de Jobim, que já teve um primoroso registro na voz de Elizeth Cardoso.


A platéia, onde predominavam fãs de Roberto, permaneceu acesa o tempo todo. Ouvir os dois cantando juntos “Samba do avião” me fez lembrar os meus primeiros dias de morada aqui no Rio. E emendaram “Tereza da praia”, fazendo com graça o diálogo dos amigos apaixonados pela mesma mulher.
Belíssimo também foi o acompanhamento de uma competente orquestra de cordas, sob regência dos maestros Jaques Morelembaum e Eduardo Lage. Além de músicos exclusivos para cada um dos dois artistas e a presença pontual de Daniel Jobim no piano. O cenário de Daniela Thomas, inspirado nos traços de Oscar Niemeyer, cumpriu sua função sem afetação e a direção de Monique Gardenberg e Felipe Hirsch foi correta.
Dias depois li matéria em jornal apontando “deslizes” na atuação de Caetano, como entradas atrasadas em algumas músicas. Penso que, com sua “dicção de camaleão”, como já apontou Luiz Tatit, há mais estilo que propriamente erro no seu cantar.
Ia esquecendo. Não senti nenhum cheiro de “naftalina”, como sugeriram os “críticos” de dois jornais de São Paulo. Enfim, como sabemos, falar mal gratuitamente do trabalho de artistas como Caetano e Roberto ainda alimenta o ego de alguns. Fazer o que?

* Texto publicado no jornal A União PB 06/09/2008

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

= Peça A última gravação de Krapp e Ato sem palavras 1 – Oportunidade de ver Sergio Britto interpretando, mais uma vez, textos de Samuel Beckett. São duas atuações bens distintas, num mesmo espetáculo, mas sempre sobre a angústia de algo que se perdeu, ou que está se perdendo. A paixão de Britto pelo teatro é perceptível em cada gesto - sempre mínimo, mas cheio de significação. No teatro do Oi Futuro.
= Peça Contando Machado de Assis – O excelente ator José Mauro Brant presenta um trabalho despretencioso, pautado na contação do conto "Missa do galo" e capítulos de "Mariana", de Machado de Assis. Brant sabe apagar do expectador, com sua leitura singular dos textos machadianos e sua qualidade como intérprete, qualquer espectativa de um grande espetáculo. Tudo é meticulosamente lançado às entrelinhas, bem ao gosto do autor. Teatro de Arena da Caixa Cultural.
= Peça Monstra – Sob direção de Jorge Fernando, Patricya Travassos apresenta um texto próprio numa peça que, sem dúvida, renderá uma longa temporada. O texto trata das "dores e delícias" de ser mulher na contemporaneidade, mas é mais que isso. Travassos tem sacadas inteligentes que agradam em cheio o público. Demonstração de que o tema ainda rende bons trabalhos. Teatro dos Quatro.
= Peça Aux pieds de la lettre – O fabuloso grupo de teatro gestual Dos a Deux apresenta um trabalho consistente de interpretação, pesquisa e montagem de um verdadeiro espetáculo teatral, em que o corpo do ator é segundo a segundo testado, desfeito e remontado diante do público. Teatro Nelson Rodrigues.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Um dia com Madonna

Sabe aquela história “não critique ninguém, pois você não sabe onde seus pés tropeçarão”? Sempre achei um absurdo alguém enfrentar filas de horas e horas para comprar ingresso de show, jogos... Mas, como vivemos para fazer e desfazer nossas certezas decidi enfrentar o ritual que é garantir um lugar no show que Madonna fará no Maracanã.
Tudo começou ainda na madrugada de domingo para segunda quando tínhamos a feliz ilusão de fazer a compra pela internet. Resultado: depois de um tempo enorme na frente do computador efetuando a compra, vimos o valor ser debitado no cartão, mas o site da Tickets for fun (nunca esquecerei este nome), responsável pelo (des)serviço, resolveu travar e não registrou a compra.
Amanheceu e novas tentativas, agora para reclamar do débito indevido. Nada! Foi aí que tomei a decisão. Ir para a fila que desde o dia anterior já era grande. Cheguei por volta de 9h. A aflição era geral. As notícias de pane no site já rolavam por alí. Com água, toddynho e biscoito passatempo(!) na mochila, além de livros, revistas e jornais – que quase não foram abertos – me sentei atrás de meus companheiros de jornada. Aos poucos nos conhecemos, constatando semelhanças de gostos etc. e tal. Hoje em dia é tão difícil passar um dia todo ao lado de alguém, que agradeço aos céus por ter ficado perto de pessoas legais de fato.
Antes de chegar à fila, porém, passei por um casal de idosos que caminhavam na manhã fria. Quando me aproximei, a senhora falava em voz alta que “se fosse para ver Jesus ninguém enfrentaria uma fila dessas”. Pensei “isso foi comigo”, mas estava tão descontraído, já olhando as bibas, travas, caricatas e afins, que nem olhei para trás.
A fila foi uma pré-festa. Muitos descolados, mauricinhos, patricinhas... Diversas tribos, modos e jeitos particulares de “ser fã” de Madonna. Gente que não poupa brilho para sair de casa, gente que não dispensa o preto. Gente que gesticula, gente que fica quieto. Todos tendo que se servir de biscoito globo e guaravitão para enganar a barriga.
A certa altura uma moça exclamou: “Nossa, que rapaz bonito! Será que ele é hétero?” Um de meus colegas respondeu com a pérola do dia: “Aqui você só vai encontrar gay ou cambista, minha querida”. Há controvérsias.
Ao longo do dia os colegas de fila buscavam notícias, e iam a todo instante conferir o tamanho da multidão atrás de nós, e assim nos distraímos de lembrar a enorme distância que nos separava da bilheteria – aberta às 11h, com os ingressos de alguns setores já quase esgotados. Desespero. Apreensão. Alguém mais alterado dá um chilique. Pronto, será que seria tudo tempo perdido? Desisto disto e vou embora? Olhei para uma trava montada a poucos metros de mim, toda digna de salto XV, maquiagem impecável e cabelo louro escovado, no sol a pino. Pensei, “vou até o fim”.
Mas como loucura pouca é bobagem, o nonsense mesmo foi saber que alguns sabidos estavam, literalmente, alugando os idosos que passavam na rua. Em instantes apareceram avô de um, tio de outro. E as bibas mais afoitas logo começaram a desafiar as velhinhas que provassem serem fãs da Madonna. “Quero ver cantar Vogue!”, gritavam desesperadas aquelas que tinham virado a noite ali na calçada. Um colega sugeriu que alugássemos uma cadeira de rodas. Idéia rechaçada, afinal somos seres do bem.
Muitas coisas rolaram, ou pelo menos ficamos sabendo que rolaram, pois de onde estávamos era difícil distinguir ficção de realidade. Ainda mais depois de quase doze horas, sol, ventania, sem almoço, vontade de ir ao banheiro... Claro que houve um revezamento para as necessidades de cada um, mas o cansaço era violento.
Resumindo: Era quase 22h, quando saímos da fila COM OS INGRESSOS. Fomos todos felizes e em bando tomar o metrô. Já não sentia minhas pernas. Minha cabeça estava leve. Minha barriga (eu ainda tinha barriga?). Ainda vi ao longe a amiga toda digna, ainda no seu salto XV, maquiagem e cabelo impecáveis.
Fiz o sacrifício. Passei pelo ritual. Espero ser recompensado. Isto é, se a mãe de David, Rocco e Lourdes não cancelar (toc, toc, toc), já que a turnê termina aqui na América do Sul e a cinquentona pode estar exausta. Se bem que, como aventou outro coleguinha de fila, com a distância que vamos ficar do palco, poderiam até mandar uma trava-dublê no lugar dela que ninguém saberia distinguir mesmo. Prometo contar aqui, depois de 14 de dezembro, tudo que rolar na fila de entrada pro show e no show, óbvio.