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segunda-feira, março 12, 2007

Ainda Babel

Por Carlos Eduardo dos Santos

Talvez não haja mais o que falar sobre um filme depois que ele perde o Oscar. Pode parecer chutar cachorro morto. Porém, desde que Babel estreou por aqui, em meados de janeiro, por mais de uma vez eu e Leo nos deparamos com uma situação estranha. Era como se as críticas ou observações que líamos fizessem uma leitura do filme considerando-o como um produto feito para passar no Brasil ou no Marrocos. Como se fosse um filme para ser lido por nossas sensibilidades, a partir do nosso ponto de vista das situações.

Evidente que por esse ângulo haverá uma compreensão bem diferente, embalada principalmente por nossas emoções ao nos ver retratados em algumas situações, em especial as dos mexicanos.

Porém ficamos particularmente curiosos de saber o que nossos irmãos latinos da América do Norte pensam da representação deles e de seu país, mais uma vez estereotipada, a lá Speed Gonzales. Sim porque o México, quando a câmera cruza a fronteira, é o dos sujos, feios, pobres, e totalmente passionais. Pessoas que não agem como seres pensantes e sim como vulcões emocionais.
Nos USA as ruas são certinhas, bem calçadas, e ainda é dia. É só cruzar a fronteira que cai a luz e o que vemos - através dos olhos das crianças brancas que vão no banco de trás do carro da babá mexicana - são prostitutas, lugares decadentes, gente estranha.
Na festa, o sobrinho mexicano (Gael Bernal) da babá - sorrindo sadicamente no meio de bando de crianças - mata um frango de modo bárbaro sob o olhar aterrorizado do menino americano. Aliás, este é um dos grandes problemas de
Babel: o ponto de vista da câmera. É o ponto de vista de quem está achando tudo estranho. No México são as crianças, no Marrocos são os americanos, e no Japão é a própria platéia porque fomos "educados" pelas lentes ocidentais a ver sempre os orientais como "estranhos".
Mas ainda no México vemos o sobrinho da babá dirigir como um louco, bêbado, um carro caindo aos pedaços e furar a barreira da fronteira, com crianças a bordo, sem medir conseqüências dos atos. Tal como a babá, que irresponsavelmente havia largado suas obrigações e carregado duas crianças numa aventura. Mas afinal "eles" não raciocinam mesmo...
Nossa leitura abranda todos estes estereótipos porque vemos romanticamente como a força das paixões, das pessoas verdadeiras que agem dominadas por seus impulsos. Idéia que agrada muito ao público latino desde Carmen.
Porém, cabe lembrar para quem, e para qual mercado afinal foi feito o filme. E lembrar também em quem vota nele para o Oscar.
Em sã consciência, alguém acredita que um americano (ou europeu) ao ver aquelas imagens do México vai se lembrar que aquele é um dos países mais dinâmicos do mundo, com uma capital moderníssima, uma indústria que tem dado banho na nossa, uma sociedade desenvolvida? Ou vai lembrar daquelas figuras de poncho e sombrero, dormindo sentadas nas calçadas tais como num desenho do Ligeirinho. Vai lembrar da folclorização de Frida, de toda a filmografia americana que insiste em mostrar os mexicanos ora como um povo alegre que vive dançando e bebendo, ora como pessoas perigosas, ou ora como integrantes de um grande bordel. Afinal vários filmes americanos já mostraram os ianques cruzando a fronteira do México para buscar sexo (até Brokeback Mountain).
A imagem cristalizada pelo cinema americano - e que em alguns aspectos Babel reforça - é de que o mexicano é um povo preguiçoso, bêbado, sanguinário, bandido, violentamente passional e sem caráter.

E as imagens da violência, pobreza e atraso do Marrocos? A impressão é de que a câmera assume um postura de documentário, vasculhando a miséria humana, de vidas sem perspectiva, presas a seu destino. Uma família isolada e sem valores, uma aldeia insalubre onde o médico ineficiente é substituído pela fumaça da curandeira, uma polícia estúpida e violenta. Aliás, bem ao contrário da polícia americana que é mostrada firme porém humana (dá até cobertor para a babá detenta).
Por conta de criar uma situação dramática relacionada com outras histórias, os autores reforçaram um estereótipo de povo que mata sem motivo, como se vocacionados ao terrorismo. E não há tempo nem intenção de qualquer explicação (sociológica, antropológica ou não) para o que acontece.
Quanto a história da menina japonesa - sem dúvida a melhor, ao mostrar
a personagem muda "conversando" com todos (até por celular) mas se comunicando com poucos - também é temperada com o estereótipo na forma de mostrar o povo japonês. Aliás, em termos de cinema, os orientais são indiscutivelmente o próprio sinônimo para exótico e estranho. Chineses, japoneses, vietnamitas, mongóis, tibetanos, etc, todos são misturados num mesmo caldeirão de exotismo. Não há filme recente passado em Tóquio que não tenha uma profusão absurda de letreiros luminosos, zilhões de pessoas atravessando ruas, altíssima tecnologia, e gente com roupas e cabelos estranhos. Um vocabulário cinematográfico paupérrimo, sem dúvida. Mas são com lugares-comuns desse tipo que se escrevem centenas de roteiros.
Lembro especialmente o oscarizado roteiro de "Encontros e Desencontros", dirigido por Sophia Coppola e estrelado por Bill Murray. Celebradíssimo pela crítica, o filme é uma sucessão de piadinhas preconceituosas que Murray faz dos "estranhos" japoneses e seus costumes "exóticos". Confesso que na época que assisti, saí do cinema enjoado.

Mas o que mais me chama atenção em Babel é o papel dos americanos. Em primeiro lugar são representados por dois atores de beleza apolínea perdidos na desolação do deserto, entre turistas gordos e velhos, e uma população local de gente suja, feia, e de pele queimada e enrrugada. Parecem dois anjos perdidos num inferno. Quem sabe uma referência a Orfeu resgatando Eurídice do Hades?
Em segundo lugar o fato de que os americanos não dão um tiro sequer no filme. Eles são ora pessoas indefesas no Marrocos, ora policiais eficientes na fronteira.

Ouvi um comentário que a arrogância do personagem de Brad Pitt (totalmente justificada uma vez que tenta desesperadamente socorrer sua mulher num local que não tem absolutamente nenhum recurso) é rechaçada pela integridade do marroquino que não aceita o dinheiro dele. Francamente, é uma solução dramática muito antiga, que acaba parecendo mais aquela história da empregada doméstica que é pobre mas é "limpinha".

Mas, de toda forma, quando sobem os créditos a idéia que ficou clara pra mim é que para leitura dos mercados americano e europeu, Babel é uma mostra dessa realidade terrível que povoa o mundo lá fora. Penso na reação do americano que mal distingue um país do Norte da África de uma nação do Oriente Médio. Penso no quanto a "tragédia que se abate sobre os pobres e inocentes turistas do filme" não ajuda senão a apoiar, ao menos fazê-los se manter indiferentes a que se continue a invadir países "bárbaros". No quanto a atitude irresponsável da babá e o sobrinho bêbado alimenta as idéias de xenofobia e as restrições à entrada de imigrantes nos USA.
Provavelmente não foi nisso que pensaram os autores (diretor e roteirista), ambos latinos. A idéia de mostrar a incomunicabilidade entre os habitantes desse planeta funciona. Mas a escolha dos personagens e situações - a meu ver - foi um erro que compromete todas as boas intenções.

2 comentários:

Anônimo disse...

Adorei seu texto Carlos, muito bem escrito!!! E é superlúcido ao abordar as questões que o filme levanta... Concordo com muita coisa que você diz, o filme, de fato, reforça estereótipos... Engraçado, me envolvi tanto emocionalmente que deixei passar isso, que é grave. Só penso que, estereótipos à parte, você observou o que eu penso ser uma qualidade do filme: o olhar permanente de estranheza da câmara, que, apesar de tb reforçar lugares-comuns, transmite a sensação de desterritorialização típica do mundo globalizado em que vivemos. As pessoas vivem em um eterno não-lugar, com uma forte sentimento de deslocamento, de já não pertencer a uma terra, uma pátria...São estranhos em terra estranha. Daí o contraste com as imagens mais "típicas" de cada lugar, que infelizmente adotam estereótipos... Mas o que soa como costume bárbaro (e é mostrado dessa forma) tb remete a tradições populares que a cultura elitista despreza e finge não existirem... A alegria e a bebedeira do povo mexicano transmite, é verdade, a imagem de bandoleiros/desordeiros comumente a eles associada... mas as crianças descobrem um mundo novo que as fascina, porque é cheio de vida. Talvez o pior seja justamente isso: associar a desordem dos impulsos com a vida mais autêntica, menos asséptica que a dos americanos. O aspecto bom disso tudo, mas que acaba ficando enterrado no erro de padronizar preconceituosamente uma cultura rica como a mexicana, é que o cidadão não se sente tão sufocado e pressionado a adotar uma conduta opressiva e desumana como a americana. A obsessão pela ordem e pelo respeito aos valores democráticos, especialmente às liberdades individuais balizadas pelo contexto social que as engloba, termina por criar monstros, como a própria polícia dos Estados Unidos: qual a violência maior? Atirar a esmo em um ônibus de turistas, de forma irresponsável e impessoal, ou manter-se impassível diante do sofrimento desesperador de uma imigrante que violou as regras? Concordo com tudo que você falou sobre a imagem que o público americano tem do Terceiro Mundo, o filme, sem dúvida, reforça o erro. Mas a violência americana tb está lá, talvez de forma menos contundente, mas absolutamente real: a impessoalidade, a falta de emoções, a ausência de compreensão, enfim, de humanidade. E é bom observar que o policial que resgata a babá no deserto é um latino, mas incapaz de se comungar de seu sofrimento, por sua obediência cega ao sistema do país que acolheu seus ascendentes. Simplista? Pode ser... Mas soa autêntico. O filme, pois, parte dos estereótipos de cada lugar, tentando ultrapassá-los a fim de demonstrar a intolerância e a violência de cada um, contextualizando cada atitude em face das imagens mais conhecidas. O mexicano é festeiro, bêbado e irresponsável, mas tb é capaz de sacrifício, dedicação e amor que o tornam especialmente humano... e esse aspecto se reflete na conduta de Pitt para salvar a mulher, que, no fim das contas, é uma pessoa detestavelmente preconceituosa, intolerante como a polícia de seu país. O filme termina falhando, porém, ao não conseguir transcender alguns lugares-comuns, isso é verdade... E isso se torna mais grave, porque, apesar de não comprometer seriamente a estrutura dramática, agrega efeitos sociais danosos. Mas tem qualidades que devem ser ressaltadas, sem dúvida, especialmente no caso da japonesa: em vista de tudo que expus, não considero um defeito em si o fato de o filme partir do estereótipo, que, na história dela, considero satisfatoriamente ultrapassado. O defeito, como Carlos apontou de forma contudente e muito perceptiva, é quando a "boa intenção" morre na praia e a imagem equivocada de toda uma cultura periférica prevalece e tem um imenso potencial de prejuízo.

Anônimo disse...

Fala Carlos, já te avisaram que escrever vicia? E você leva jeito, ainda não vi o filme e com certeza lembrarei de você quando for assistir, muito em breve. Gostei da tua percepção, possivelmente assim que assistir volto aqui para te alugar mais um pouco. Abração!