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quinta-feira, janeiro 26, 2012

A propósito de Senhorita Julia

Em seu drama naturalista Senhorita Júlia, August Strindberg tematiza as diferenças sociais e como tais distâncias são amenizadas e/ou inflamadas pelo desejo erótico-afetivo no tecido social e em suas relações interpessoais. O autor usa os jogos implícitos às relações (de poder) amorosas como artifício cênico e ficcional da ação das personagens.
Na peça A propósito de Senhorita Júlia, José Almino e Walter Lima Jr. conseguem adaptar ao Brasil contemporâneo a disputa do desejo (erótico e hierárquico) entre patroa e subalterno. Tudo se passa na noite da vitória de Lula à presidência: êxtase dos movimentos sociais que lutam contra a naturalização das desigualdades.
E isso promove uma série de possibilidades ao texto e à ação dramática: do foco sobre certa invisibilidade da desigualdade à explicitação e reiteração de posições sociais, passando pela inadequação entre discurso e atitude.
O som da festa de comemoração dos empregados da casa de Júlia é o pano de fundo da maior parte da peça. É lá, fora dos olhos da plateia, que Júlia (filha do patrão) e Moacir (motorista) dançam juntos no meio do povo. "Hoje estamos todos festejando, sem distinção de classes", diz a Júlia de Strindberg com eco na Júlia de Almino e Lima Jr. Aliás, o som da festa - sempre em off - atravessa e quer atrapalhar as ações em cena.
"Eu me criei olhando para cima sem saber como chegar lá", diz Moacir (Armando Babaioff). "Não consigo ter paz enquanto não caio lá embaixo. No chão", diz Júlia (Alessandra Negrini). Ambos representando a atração e a repulsa do desejo: a tensão entre "um lado carente dizendo que sim e a vida gritando que não", como diria a canção.
Em cena, a beleza física e a gestualidade corporal de Alessandra Negrini suplanta sua voz pequena, correta à suposta ingenuidade de Júlia, enquanto o timbre vocal firme de Armando Babaioff alça voo aos movimentos cênicos acanhados de Moacir. Ambos no perfeito equilíbrio do par sempre em instável que o texto pede. Isso sem esquecer de Cristiane (Dani Ornellas) a outra ponta firme do triângulo.
A cenografia de José Dias funciona na intenção de mostrar como, no Brasil, a rua se imiscui em questões pessoais. E o figurino (Angèle Fróes) e a iluminação (Daniel Galván) se harmoniza no espaço criado.
Controle e liberdade armam o labirinto por onde as personagens transitam. Ninguém parece querer assumir as responsabilidades sobre si, sobre seus desejos, minando o rancor e a amargura que afastam e permitem os contatos íntimos do quarto à cozinha e vice-versa.
Sem contornos fixos, "sem características linear", diria Strindberg, às personages é permitido refletir e refratar uma gama enorme de emoções contraditórias e complementares. Tesão, tensão e insatisfação alimentam gestos, atos e omissões.
Sem dúvidas, a excelente adaptação do texto - com todos os fios muito bem trançados - é o ponto alto e o motor de A propósito de senhorita Júlia. Uma grande peça em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues até 12 de fevereiro de 2012.

domingo, janeiro 22, 2012

O Brado Retumbante

O Brado Retumbante é uma fogueira de ressentimentos e recalques. São tantos deslizes e passos atrás no avanço das questões que tangem desigualdade social e dignidade no Brasil que chega a meter medo.
Para colar-se ainda mais ao modelo norte-americano de séries e filmes que tem presidentes como protagonistas, O Brado Retumbante transfere (ou divide) a sede do governo para o Rio de Janeiro e suas locações neoclássicas, facilitando os movimentos estonteantes e grandiloquentes das câmeras, a iluminação heróica e os enquadramentos sofisticados. Além, claro, de com isso exorcizar o recalque em relação à mudança - ainda hoje engasgada e mal resolvida - da capital federal do Rio para Brasília.
Nada mais conservador. Mas Paulo Ventura é blogueiro, dá voz à primeira dama preocupada com a educação do país e tem um filho transexual. Pronto. A cota de "ousadia" e mudernidade da série está posta. De resto, somente reforça a teledramatúrgica mitologia dos bastidores do poder. Nenhuma novidade ou originalidade. Ah, sim: o excesso de ministros e um senador poderoso dão um clima de contemporaneidade(!) e uma fresta de realidade(!) à trama.
Chupada da personagem que Carlos Vereza interpretou na novela O rei do gado, mas deslocada e adaptada às intenções de um novo contexto sócio-histórico, a personagem do ótimo ator Domingos Montagner precisa da sombra (quase) ninfomaníaca para não cair de vez no clichê do macho político honestíssimo.
Mas é na beleza e na elegância (aí sim) retumbantes de Maria Fernanda Cândido que o texto montado minimetricamente para nublar as discussões sobre "liberdade de imprensa" (o que é isso mesmo, no Brasil?), preconceito linguístico (reforçado pelo sotaque nordestino em alguns - os de comportamento mais reprováveis - dos inúmeros ministros herdados por Paulo Ventura), o fato das boas intenções serem bloqueadas pela máquina administrativa e a atuação de ONGs encontra a melhor tradução e respaldo para aproximar-se e ser docemente aceito pelo público.
Onde está o brado repúdio à avalanche desmoralizadora em que vive as esferas do poder? Invertendo, ridicularizando e/ou deturpando as premissas e os empenhos ideológicos dos movimentos sociais, o texto referenda o discurso ressentido de quem não admite a emergência social e, consequentemente (ou não), a perda - ou fragmentação - de poder.
Ipsis litteris, podemos ouvir espalhadas na fala de algumas personagens da série, mas condensadas na voz de Antonia (Maria Fernanda) as queixas de quem não está (será?) mais no poder e ironiza - com requintes de sofisticação (o ponto alto do texto) - a ideologia de quem tenta desmontar verdades absolutas historicamente construídas e disseminadas.
Paulo Ventura torna-se presidente do Brasil por acaso. Muito embora a posição que lhe permite chegar a tal cargo - presidente da Câmara dos Deputados - seja o resultado da manipulação daqueles que ele mesmo quer combater: os corruptos (palavra que parece que entrou a pouco tempo no vocabulário brasileiro). Mas comentar o fato do presidente e do vice serem vítimas do mesmo acidente aéreo faz tanto sentido quanto o acidente em si.
Aquarelada de forma divertida e colorida, como sempre, dos cabelos pintados de preto como a asa de graúna ao comportamento caricato e coronelista de políticos, a vida nos bastidores do poder é um eterno gerador de polêmicas e de risos. Tudo rasamente assimilado e analisado. Mas, afinal, O brado retumbante é uma obra de ficção. E é feito para queimar ressentimentos.

quarta-feira, janeiro 18, 2012

Rio São Francisco - Um rio brasileiro

Um teto de peixes multicoloridos feitos de garrafas plásticas recepciona os visitantes que chegam ao mezanino do Palácio Gustavo Capanema, onde tem lugar até o dia 10 de fevereiro a exposição Rio São Francisco - Um rio brasileiro.
Quatorze ambientes montam o interior do vapor Benjamin Guimarães, auxiliando na navegação de um dos rios mais cantado e importante do Brasil.
Desde "Mapa" e "A foz do rio", onde monóculos mostram algumas cidades que margeiam o Chico e um vídeo de Ronaldo Fraga explica a proposta da exposição, até "O Chico e o caixeiro viajante", feito com malas, uma velha cama suspensa - onde descansa uma roupa já usada - e vídeos, a multiculturalidade banhada pelo São Francisco é tematizada de diversas formas e meios, longe do didatismo chato.
A pujança e a agonia, o viço e a quase-morte do São Francisco e de sua gente - crenças, sabores e cantos - são lembrados tanto em "Lambe-lambe das lendas", quanto em "A voz do Chico", passando por "O gosto que o Chico tem" e "Cidades submersas".
No primeiro ambiente, o estilista Ronaldo Fraga arma ilustrações para as lendas que povoam a imagética ribeirinha. No segundo vestidos "falantes" (Maria Bethânia declamando Drummond) e abraçáveis despertam o afeto físico dos sons. "O gosto que o Chico tem" estetiza os mercados, seus cheiros e sabores. E "Cidades submersas" - talvez a instalação mais impactante visualmente - jogos de luz e sombra com espelhos, projeções e maquetes representam lugares já habitados e que cederam a vez às barragens.
Há ainda que se falar de "Memória e devoção", onde a religiosidade e a saudade estão acesas na parede repleta de fotos mal iluminadas (turvas como a memória) e nos ex-votos pendurados.
A interatividade também está presente quando o visitante é levado a desenhar na grande lousa circular que forma o ambiente 10 "De gota em gota se faz o mar" - um útero a lembrar que "dentro do mar tem rio" - e em "Pescaria".
Cada ambiente, peça, traço, bordado, trançado utiliza a cultura e busca fotografar a alma ribeirinhas. Ronaldo Fraga parece atento a cada pequeno gesto e gosto daquilo que compõe a mitologia do Chico.
A execução da exposição é digna de nota. Curador lúcido, o estilista impregna tudo com tons e cores necessários à produção de presença. Traduz e transfere signos para celebrar o (sempre) velho/novo Chico.

segunda-feira, janeiro 16, 2012

As mimosas da Praça Tiradentes

Há tempos venho pensando na importância de travestis e transformistas para a construção e manutenção das memórias cancional e cultural brasileiras. O empenho cênico (dramático) e afetivo (amoroso) destes artistas com suas musas e divas ampliam nossas leituras e entendimentos daquilo que entendemos por "viver de arte e de arte viver".
E são tantas as bidus, chiquinhas, rúbias, carmens, ângelas, elizetes, bethânias (re)coroadas infinitamente em interpretações personalíssimas e dignas de notas!
Em cartaz no Teatro Carlos Gomes, As mimosas da Praça Tiradentes, além de contar - entre o didático e o vivencial - a história da Praça tema, e seus arredores, um dos núcleos forte e definidor da formação cultural do Brasil, onde surgiu o teatro brasileiro, é o desenho exato de que enquanto os homens exercem seus podres poderes [transformando teatros ora em centro de arrecadação de dinheiro em nome de um Deus separatista, ora em estacionamentos], índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes, vedetes e estrangeiros e ciganos fazem o carnaval-Brasil: abrem os pulmões do país.
Com um texto (Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche) cheio de colagens, citações e arremedos do cotidiano próximo e mnemônico - o que facilita a empatia da plateia com a festa no palco - o musical As mimosas da Praça Tiradentes colore uma história atravessada por ciúmes, incêndios, vinganças, invejas e paixão: muita paixão.
Por falar em texto, merece destaque o desempenho deste na voz e no corpo de Milton Filho - a Catula de Montecarlo: a "cota" muito bem humorada e crítica afrodescendente do espetáculo.
A alegria e o tesão pelo fazer dos artistas em cena é outro ponto alto. Com Cláudio Tovar - nada melhor do que um Dzi Croquette para tal posto - como mestre de cerimônia, professor Lola , César Augusto (Tatá - Samantha Overbook), Gustavo Gasparani (Vânia - Vanilla Cherry), Jonas Hammar, Milton Filho e Marya Bravo purpurinam a imagética do público diante das personagens (demasiado humanas) em cena.
E o que é Marya Bravo em cena? Ela sempre surpreende com sua competência vocal, cênica, artística: uma diva dadivosa essa Marya Bravo. Aliás, a dúvida de gênero na montagem de sua personagem é o esplendor, como diria Lola, do jogo lúdico.
A direção segura de Sergio Módena e Gustavo Gasparani foca no brilho individual de cada personagem, engrandecendo o todo. Os diretores utilizam bem um cenário (Ronald Teixeira) que ora é bastidor, ora é palco para a movimentação de emoções.
O corpo de baile demonstra afinação e se hamoniza na trama, sob a direção do movimento de Renato Vieira. Os bailarinos-cantores Arthur Marques, Wallace Ramires, Thiago Pach, Pedro Arrais, Thadeu Matos e Paulo Mazzoni tencionam bem a luxúria e a malandragem (argamassa mítica da Praça) nos gestos corporais.
Os músicos - Nando Duarte (violão / guitarra), Itamar Assiere (piano), Pedro Mangia (baixo), Carlos César (bateria) e Dado (sopros) - entram na diversão e desempenham com entusiasmo suas funções.
As mimosas da Praça Tiradentes restitui tempos e espaços em que a palavra liberdade era mais do que um mero mote para teses ou grito de ordem politicamente correto. Aqui, liberdade é a festa interior e coletiva de cada um ser o que é: entre tropeços e avanços na vida. E só por isso merece ser visto. Mas As mimosas da Praça Tiradentes é mais. Bem mais. Confere dignidade e respeito às matenedoras da mitologia da praça: as mimosas.

sábado, janeiro 14, 2012

Tono

Tono
Som em 4 tempos
Sala Sidney Miller
13/01/2012