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quarta-feira, maio 28, 2008

O barco do inferno são os outros

Zona de Guerra está em cartaz até dia 1º de junho do Teatro de Arena da Caixa Cultural e merece muito a atenção do público carioca. O espetáculo da paulista Cia. Triptal faz parte do projeto “Homens ao Mar” de montar quatro peças do chamado Ciclo do Mar de Eugene O’Neill. Entretanto, após assisti-lo, percebemos que ele tem vida própria.
Desde antes de começar a peça, os espectadores são conduzidos, através de recursos quase minimalistas de iluminação e trilha sonora, ao ambiente de confinamento experimentado pela tripulação de um navio cargueiro que contrabandeia munição durante a 2ª Guerra Mundial.
Tudo é extraordinariamente elaborado. Cada movimento dos atores, auxiliado pelo cenário e figurinos perfeitos, acrescenta mais e mais tensão, fazendo cada cena superar a anterior. As soluções imagéticas concebidas pelo diretor André Garolli detalham tal tensão até não mais poder. Tudo adquire um clima extremado. Os sentimentos das personagens ficam impregnados do ar rarefeito, que circula em si mesmo, aprisionado em porões de ferro.
Em Zona de Guerra a ação começa quando um dos marinheiros muda uma caixa preta de lugar. Esse pequeno ato é o estopim da desconfiança e do assombramento dos demais tripulantes diante do desconhecido. Como conviver e lidar com o medo de ter um possível espião a bordo? Tema bastante atual em tempos de políticas do medo e de terrorismos.
Em cena, durante boa parte da peça, temos apenas uma versão da história. A versão gerada e alimentada pelo medo. O cenário e as marcações cênicas auxiliam o texto a criar uma espécie de redemoinho alienante e alienador. A platéia não fica impassível. Tudo incomoda e busca desterritorializar as certezas do radicalismo ético que cada um ainda teima em manter.
É interessante perceber as pertinentes conexões do texto com o recente noticiário dos jornais, da busca desenfreada do “culpado”. São pais, madrastas, jogadores de futebol, travestis, artistas, políticos, etc., linchados catarticamente por um imenso "coro grego" transfigurado em opinião pública.
Fica difícil destacar um ator. Todos demonstram o quanto de trabalho, de pesquisa e empenho emprestam para que a peça atinja o nível de excelência. Os jogos corporais e a voz preparada – que chega a soar estranha por ser pouco freqüente em nossos palcos – se unem a um todo cênico para formar um só conjunto orgânico, dificilmente visto nas últimas montagens cariocas.
Zona de Guerra é teatro no melhor uso do termo. A tentativa de mostrar os limites de um grupo de homens confinados por um longo período de tempo, com poucas alternativas de espaço é mais do que alcançada. E serve também para os que só conhecem o O´Neill de Longa jornada noite adentro. O espetáculo é realmente imperdível.

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

> Filme My Blueberry Nights – Se assistido na superficialidade, o filme é muito chato. Mas, entrando no universo criado pelo diretor, através de recortes de uma vida cotidiana, a construção das personagens é muito boa. E Norah Jones não decepciona como atriz.
> CD Feriado (Celso Fonseca) – Com seu projeto pós-bossanovista, o cantor recria clássicos e apresenta novidades. Destaque para a interpretação de “Queda”, que está rolando nas rádios, e “Ela só pensa em beijar”.
> Turismo Parque da Cidade – No Morro da Viração (Niterói). Bela vista da Baía de Guanabara, numa reserva biológica e florestal. Altitude de 270 metros propícia para vôos de asa-delta e parapente.
> Livro Banalogias, de Francisco Bosco – Com sua tentativa despretensiosa de falar sobre o nada, o ensaísta toca em assuntos delicados da nossa malfadada contemporaneidade.

quarta-feira, maio 21, 2008

O Mar que É

O requinte e a suavidade de Adriana Calcanhotto são alguns dos atributos mais sensíveis de sua obra. Entre tantos outros identificáveis sob as ondas de sofisticação com as quais a artista imprime seu trabalho.
Agora é a vez de Maré, segundo disco de uma trilogia que tem o mar como tema. O primeiro foi Maritmo (1998).
São 11 faixas em pouco mais de 34 minutos no total.
O repertório é embalado por sons tranqüilos. Um mar que se apresenta íntimo para o navegante. Mas sem perder suas “ondas altas” como no acento country de “Um dia desses” - poema de Torquato Neto, musicado por Kassin; “Porto Alegre” (Péricles Cavalcanti), um calipso dedicado à personagem mitológica Calipso, sublinhado pelos vocalizes de Marisa Monte, insinuando as sereias que tentaram o homérico Ulisses. Ou ainda a pop “Mulher sem razão” (Dé Palmeira, Bebel Gilberto e Cazuza), gravada originalmente por Cazuza no álbum Burguesia (1989).
Como é
difícil atravessar o mar e deixar de ancorar em Dorival Caymmi, Adriana interpreta "Sargaço Mar", acompanhada apenas pelo violão de Gilberto Gil.
Co-produzido por Arto Lindsay, o disco tem ainda a poesia de Ferreira Gullar, “Onde Andarás” (com melodia de Caetano Veloso, de 1967), e de Augusto de Campos o poema interativo “Sem saída”, com seus labirínticos versos musicados por Cid Campos. Nesta faixa temos o arranjo luxuoso de Aldo Brizzi.
Também merecem destaque a primeira parceria de Adriana Calcanhotto com Arnaldo Antunes, na canção “Para lá”, que tem Rodrigo Amarante, ex-Los Hermanos, no piano. E “Seu pensamento”, parceria com Dé Palmeira, com uma única nota da guitarra de Kassin atravessando a música de ponta a ponta, mas sem enjoar, pois é pontuada pela voz tranqüila e exata de Calcanhotto, e por outros instrumentos.
Já “Teu nome mais secreto” é uma parceria de Adriana Calcanhotto com Waly Salomão (1943-2003), a quem o CD é dedicado, e tem o violão (o mesmo usado para tocar no disco Transa, de Caetano Veloso), de Jards Macalé.
Sem esquecer de “Três”, de Marina Lima e Antonio Cícero, e “Maré”, canção que abre e dá nome ao disco.

Se
Maritmo é a fusão entre “mar” e “ritmo”, resultando em um disco mais “dançante”, Maré é o “mar que é”, com adensamentos e implicações variadas. É curtir e esperar para ver aonde o mar cantado por Adriana Calcanhotto ainda irá nos levar. Sem pressa, pois, segundo ela, o terceiro disco da trilogia não tem previsão para sair.

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

# CD Novas Bossas (Milton Nascimento e Trio Jobim) – A delicada mistura entre a voz de Milton, o som dos jobins e a Bossa Nova é incrível.
# Peça
Um homem célebre – Inspirado no conto homônimo de Machado de Assis, o musical decepciona. A construção das personagens é fraca e a direção confusa.
# Filme Indiana Jones and Kingdom of the Crystal Skull – Entre as inúmeras referências míticas, importa prestar atenção em Cate Blanchett. Sua personagem nos remete a Sêmele (mãe de Dioniso, na tradição grega). A cena final dela é supreendentemente linda.
# Exposição
Museu Carmen Miranda – Uma lástima perceber que uma figura tão importante para entendermos o Brasil tem sua “memória” tão mal preservada, apesar do esforço de quem coordena o Museu.
# Livro Escritos sobre teatro, de Barbara Heliodora – Organizado por Claudia Braga, o volume com mais de 900 páginas traz escritos (de 1944 a 1994) da mais importante crítica de teatro brasileiro da atualidade.

quarta-feira, maio 14, 2008

A nova coreografia de Deborah Colker*

Quão cruel podemos ser nas nossas relações? Este é o mote do novo espetáculo da Companhia de Dança Deborah Colker, que esteve em cartaz de 22 a 28 de abril no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Com o apropriado nome de “Cruel”, o espetáculo quebra a expectativa dos acostumados às seqüências acrobáticas que, desde “Vulcão” (1994), caracterizam a Cia. E assim, se a coreógrafa mostra estar consciente de que as fronteiras da arte vêm se dissolvendo, ao conceber uma montagem híbrida, com movimentos do clássico e do urbano, corre o risco de, ao abrir mão de seu diferencial, perder o público conquistado.
A presença de fortes elementos narrativos, aliada à (quase) ausência dos suportes cênicos, essenciais nos espetáculos anteriores, causa “desconforto” em quem acompanha o trabalho de Colker. Aliás, o desejo de “contar uma história fechada” já esteve presente no espetáculo “Nó” (2005), mas agora é radicalizado.

“Cruel” começa com um palco nu – o único elemento cênico é um imenso lustre em formato de globo – onde tem lugar um baile, espaço de encontro entre os corpos e dos arquétipos comportamentais. Já aqui, percebemos uma personagem feminina que não encontra um parceiro para dançar e atravessa toda a coreografia sozinha, ensimesmada entre hesitações e avanços em direção ao “outro”. Merece destaque ainda a curiosa trilha sonora, que mescla desde a serenata para cordas de Dvorák às batidas modernas.
As relações domésticas, em que laços sangüíneos nos limitam, é outro ambiente investigado. Entra em cena uma mesa de cinco metros de comprimento, onde personagens do universo familiar executam à sua volta movimentos que traduzem desejo e traição, rancor e competição, silêncio e contato íntimo. O ato termina com facas – instrumento ritualístico e símbolo fálico – sendo atiradas, culminando com a presença da morte.
Na segunda parte, imensos espelhos giratórios servem aos personagens permitindo que confrontem seus limites físicos e psicológicos. Tais espelhos simbolizam tanto as portas místicas para um mundo paralelo, quanto as esferas onde vivemos, seja pelo narcisismo, seja pela multiplicação contemporânea das possibilidades de escolha. Como a mulher combalida pelas investidas no mundo, que, numa cena pungente, mas previsível, fecha o espetáculo.

Ao buscar uma narrativa que mostra o quão cruel podemos ser com nossos desejos, Deborah Colker peca ao apresentar um espetáculo “pronto” e fechado. Uma crueldade com o espectador.


* Texto publicado na coluna do jornal
A União (10/05/2008).

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

- CD Amigo é casa (Simone e Zélia Duncan) – As duas apresentam canções já interpretadas por elas e outros artistas. Mas as escolhas sonoras de Zélia Duncan atravessam todo o repertório do cd.
- Show Ao Vivo no Estúdio (Arnaldo Antunes) – Com performance, pra lá de original, Arnaldo mostra suavidade e clareza nas suas atuais interpretações, outrora rasgadas e "sujas" de ruídos.
- Filme
Speed Racer – Mais uma vez, os irmãos Wachowski inaugural um novo visual para a telona.
- Filme
Cassandra's Dream - Um Woody Allen com um pé (em falso) na tragédia grega.
- Exposição
Arquitetura do medo (André Gardenberg) – A intenção de registrar "o medo" na contemporaneidade se dilui e algumas imagens são equivocadas.
- Livro As Dobras do Sertão (Josina Nunes Drumond) – Análise da dialética inconclusa de Grande sertão: veredas e sua transposição para a linguagem plástica de Imagens do Grande Sertão. Tudo focado nos mecanismos da construção neobarroca.

quinta-feira, maio 08, 2008

Geni e o Fenômeno

A esta altura, até os índios da aldeia mais afastada dos centros urbanos já sabem que Ronaldo foi flagrado num motel com três travestis.
Desde a famosa madrugada, a vida de nenhum dos envolvidos no caso tem sido “fácil”. Por um lado, Andréia é acusada de extorsão e sofre pressão de outros travestis que não querem perder clientes. Por outro, Ronaldo, além de “sujar” sua imagem pública, já perdeu alguns milhões em contratos e credibilidade.
Não cabe aqui a defesa de ninguém. A mídia já está exercendo este papel, e o de promotoria também. Porém, e além das incontáveis piadas – até o desconhecido frevo “Três travestis”, de Caetano Veloso, gravado por Zezé Motta em 1982, saiu do limbo – a questão é bem mais profunda.
Vem cá: E se fosse uma prostituta? Teríamos todo esse estardalhaço? De fato, o que incomoda nessa história toda é a presença do personagem travesti. Incomoda saber que o “fenômeno” foi seduzido por um “corpo montado”.
Como analisou lucidamente o jornalista Eduardo Peret (aqui), travestis são consideradas aberrações, pessoas doentes, sem identidade, "com o diabo no corpo". Ainda são vistas como "homens homossexuais que tentam ser mulheres". E continua: A travesti não é homossexual. Os gays de uma forma geral não querem se tornar mulheres. A travesti também não é transexual.
o que perturba e amedronta nossa mentalidade tacanha é esta indefinição conceitual. A androginia de uma “mulher com pau” ameaça, mina e trinca nossa perspectiva arcaica de sociedade. Não é nem “ele” nem “ela”, mas o elo entre os dois. Não sabemos nem como nos referir a esse elo (?).
Essa coexistência de significantes masculinos e femininos arranha a imagem do macho – esse travesti al revés (travesti ao contrário), como afirmou o ensaísta franco-cubano Severo Sarduy, ao analisar a figura do travesti na literatura. Porém, é também uma repulsa que suscita e subverte-se em atração e sedução para muitos. Ronaldo que o diga.
Figura da noite, seu corpo é dos errantes. Dos que buscam saciar desejos reprimidos.
Durante o dia, ela é feita pra apanhar. Ela é boa de cuspir.
Ficou claro que Andréia se “aproveitou” da situação. Mas Milene, a primeira esposa de Ronaldo, não se aproveitou ao ter um filho que lhe rende uma gorda pensão? Cicarelli não tirou o time de campo quando percebeu que não poderia engravidar? Uma ex-namorada dele vai faturar num filme pornô intitulado "Vivi Ronaldinha, minha primeira vez", "atuando" com um sósia do fenômeno. Serão estas benditas enquanto Andréia é a maldita?
Cada um deve saber onde melhor coloca o seu desejo. E tem todo o direito de fazer. Compreender isso requer singularidades e disposição que não cabem aqui. Inquieta, e muito, a hipocrisia do pensamento estreito que se expressa com furor nas ruas e nos jornais. Se houve ou se não houve sexo entre eles é o que menos importa.

Entre outros, ouvi, vi e li, por estes dias:

* CD Maré (Adriana Calcanhotto) – Sofisticado e conciso. Assunto para um próximo post.
* CD Candy Hard (Madonna) – Ela reinventa-se mais uma vez para adaptar-se ao mercado. Só que dessa vez não me disse muita coisa.
* Espetáculo Cruel (Cia. Deborah Colker) – Pelas especificidades, merece uma discussão mais demorada depois.
* Filme Iron Man – Ganha pelas atitudes politicamente incorretas do protagonista.
* Exposição Heaven to hell: belezas e desastres – Fotos do americano David LaChapelle.
* Livro Lendo Música – Reunião de ensaios sobre 10 canções da MPB, organizado por Arthur Nestrovski.

domingo, maio 04, 2008

O poeta está vivo, com seus moinhos de vento

Apesar da ameaça de chuva e dos problemas para liberação da orla até a véspera pela PM, o show em homenagem aos 50 anos que Cazuza faria em 2008 rolou na boa no feriado de 1º de maio, nas areias de Copacabana.

Eram esperadas 70 mil pessoas, porém foram cerca de 50 mil os que curtiram as músicas do ‘poeta do rock’ cantadas por Leoni, Sandra de Sá, Preta Gil, Zélia Duncan, Arnaldo Brandão, George Israel, Gabriel O Pensador, Angela RoRo, Paulo Ricardo, entre outros artistas.
O número de pessoas menor que o esperado não diminuiu a energia e a vontade de celebrar a obra de Cazuza. Nem o som, de qualidade sofrível, nem os incontáveis problemas com microfones, que insistiam em não funcionar, afastaram o público do local.
Quando Ney Matogrosso abriu as apresentações, apenas 15 mil pessoas estavam em frente ao Copacabana Palace. O cantor foi o único a se apresentar com banda própria, interpretando "O Tempo não Pára", seguida de "Por que a Gente é Assim?" e "Pro Dia Nascer Feliz". Três canções que estão em Inclassificáveis, seu mais recente trabalho.

Os artistas foram se sucedendo no palco e o público - formado em grande parte por jovens, muitos nascidos após a morte de Cazuza, em 1990 - quase quintuplicou num curto espaço de tempo. Isso deixa bem claro o quanto os versos do poeta ainda têm muito que dizer às novas gerações.
Um dos últimos artistas a se apresentar, Caetano Veloso deu uma versão ‘voz e violão’ para a delicada "Minha Flor, Meu Bebê". Ironicamente Caetano relata no livro Só as Mães São Felizes que, certa vez, Cazuza o acusou de tocar “violão mal pra caralho”. Depois, já sem o violão, e no melhor estilo roqueiro do disco , Caetano incendiou o público com “Maior Abandonado”.

Destaques também para as interpretações de Zélia Duncan, Ângela RoRo e Paulo Ricardo, cujas vozes e atitude de palco foram totalmente adequadas ao espírito das canções que apresentaram.
O show foi gravado e deverá sair em CD e DVD, com a renda revertida para a Sociedade Viva Cazuza, mantida por Lucinha Araújo, mãe do poeta.

Abaixo uma palinha do show: