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quinta-feira, abril 24, 2008

Quando o amor vacila

“Todas as cartas de amor são ridículas”, diz um célebre poema de Fernando Pessoa. Então, o que esperar de uma peça teatral cujo texto foi concebido sobre as cartas que um homem apaixonado escreveu para sua amada? Muito pouco, se estas cartas não tivessem sido escritas pelo escritor formalista russo Victor Shklovsky.
Definida como “peça de câmara sobre a obra de Shklovsky, Elsa Triolet, Vladimir Maiakowsky e Lilia Brik”, mas sem um autor definido para o texto encenado, Não sobre o amor, do diretor Felipe Hirsch, tem a liberdade de manipular as citações da melhor forma a atingir a metáfora sobre a morte emocional de um homem exilado de sua pátria.
A cena é dividida entre a narração das “lembranças” de Shklovsky e acontecimentos produzidos em sua mente, terreno onde Alya toma forma. Alya representa “a juventude e a autoconfiança perdidas”. O personagem é uma metáfora porque, de fato nunca existiu. O verdadeiro alvo da paixão de Shklovsky era a escritora Elsa Triolet, quem pedia veementemente que ele não falasse de amor nas cartas que lhe enviava. Esta, aliás, é a razão do estranho título da peça.
Assim, amor e exílio, nostalgia e memória, realidade e forjamento, compõem os elementos dramáticos que resultam num inquietante desconforto. Reforçados pelas inusitadas marcações cênicas que levam Leonardo Medeiros e Arieta Corrêa, Shklovsky e Alya respectivamente, a subir pelas paredes. Além disso, compõem a encenação não-realista, projeções e o cenário minimalista (ao extremo) de Daniela Thomas, onde se supõe um quarto de hospedagem qualquer – com toda a impessoalidade.
Hirsch disse, em entrevista a revista Carta Capital: “Trata-se de um espetáculo muito delicado. O mais difícil da minha vida”. O que demonstra toda a precisão e o cuidado com que o diretor trabalha a obra.
Não Sobre o Amor é um belo exemplo de como atores com formação clássica, aliados a uma encenação sutilmente moderna e uma direção consciente e inspirada podem resultar em um espetáculo sensível e íntimo para qualquer público.

Não Sobre o Amor – Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil – até 04 de maio.

terça-feira, abril 15, 2008

Em busca do objeto "artístico"

Num dia desses de chuva, fomos ver a comentada e pretensiosa exposição Entre amigos & Amores, do fotógrafo Pedro Stephan.
Stephan é especializado na temática homoerótica, no Brasil e no exterior. Seus ensaios já ilustraram da revista francesa "Tetu Magazine", passando pelas alemãs "AK Magazine", "Siegessaeule" e "Du und Ich", às norte-americanas "Circuit Noize" e "La Vida", entre outras. Além das brasileiras "Sui Generis", G Magazine" e "DOM", por exemplo. Ele contribuiu para importantes trabalhos institucionais, desde cartazes da "Parada do Orgulho" à campanha de prevenção à AIDS. Tudo isso, de cara, demonstra a importância do seu trabalho.
No entanto, focando especificamente na sua exposição “fotográfica multimídia”, não percebemos nenhuma perspectiva artística e/ou estética. O visitante entra em uma sala escura onde, de pé, assiste à projeção, a partir de um datashow, de imagens registradas pelo fotógrafo, em diversos locais-clichê da vida gay carioca. Nada, além disso. Não há estranhamento, desvio, profusão de sentidos, ambiguidade, muito menos singularização do objeto em exposição.
Como afirma o cineasta Sergei Eisenstein, não é refletindo ou retratando a realidade tal como ela é que se consegue os melhores efeitos em arte. A exposição pode até ganhar em qualidade documental, no momento em que parte do público se identifica (de várias formas) com os momentos clicados. Porém, simultaneamente perde em concepção estética. Se é que havia alguma intenção de trabalho com o objeto artístico.
A proposta era compor um painel “realístico e atual” do cenário GLBTT (a cada dia esta sigla aumenta mais) no Rio de Janeiro. “Quero contribuir para desfazer os estigmas que pairam sobre os gays”, “quero também fazer com que os gays se vejam”, disse o fotógrafo. Ora, a partir do momento em que se expõe o gay em guetos, o resultado não é exatamente o inverso? A reiteração da estigmatização?
A produtora cultural Heloísa Buarque de Hollanda, que assina o texto de apresentação, por exemplo, afirma, com algum exagero, que "nesta exposição (...) há o mapeamento geopolítico dos espaços de socialização da comunidade homossexual carioca". Andréas Valentin, curador da mostra, também não poupa entusiasmo ao declarar que "este trabalho pioneiro é o resultado de uma pesquisa realizada ao longo de vários meses, tornando-se de grande importância como estudo antropológico de uma minoria estigmatizada e alvo de preconceitos e deboches". Parecem estar falando de outros trabalhos do fotógrafo, e não o slideshow em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal. Aliás, cabe registrar, ocupando pela segunda vez um espaço de exposição no Centro do Rio. O anterior foi no Centro Administrativo da Alerj, durante o Foto Rio 2007.
Como dissemos, há o “valor didático” e a capacidade de colocar o tema em debate. Porém estamos falando de um objeto que se propõe artístico. Em que a arte deve ser realçada. O “valor didático”, o tema, as intenções explicativas, etc e tal, deveriam, existindo, permanecer “diluídos” no objeto e não se sobrepor a este, como de fato acontece.
Por fim, parabenizo Pedro Stephan pelo apreciável trabalho documental e antropológico, desenvolvido em diversas áreas da comunicação. Mas, sobre a exposição, eu esperava mais. Muito mais.

Em tempo: "Entre Amigos & Amores – espaços de socialização GLS do Rio" fica em cartaz até 27/04 no Centro Cultural da Justiça Federal, Rio.

sexta-feira, abril 11, 2008

Delicadeza perdida

José Datrino, o profeta Gentileza, tornou-se conhecido a partir de 1980 por fazer inscrições sob um viaduto no Rio de Janeiro, onde andava com uma túnica branca e longa barba. Hoje ele faria 91. Em tempos da delicadeza perdida, a mensagem deixada pelo profeta ainda é um alerta para nós. Para quem não conhece, um pouco da sua história:
No dia 17 de dezembro de 1961, na cidade de Niterói, houve um trágico incêndio no "Gran Circus Norte-Americano". Neste incêndio morreram mais de 500 pessoas, a maioria, crianças.
Na antevéspera do Natal, seis dias após o acontecimento, Datrino acordou alegando ter ouvido "vozes astrais", que o mandavam abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao mundo espiritual. O profeta pegou um de seus caminhões e foi para o local do incêndio. Plantou jardim e horta sobre as cinzas do circo em Niterói. Aquela foi sua morada por quatro anos.
Lá, José Datrino incutiu nas pessoas o real sentido da palavra Gentileza. Foi um consolador voluntário, que confortou os familiares das vítimas da tragédia com suas palavras de bondade. Daquele dia em diante, passou a se chamar “Profeta Gentileza”.
Após deixar o local que foi denominado “paraíso Gentileza”, o profeta começou a sua jornada como andarilho. A partir de 1970 percorreu toda a cidade. Era visto em ruas, praças, nas barcas da travessia entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, em trens e ônibus, fazendo sua pregação e levando palavras de amor, bondade e respeito pelo próximo e pela natureza a todos que cruzassem seu caminho.
Em 29 de maio de 1996, aos 79 anos, ele faleceu. Com o decorrer dos anos, os murais do viaduto foram danificados por pichadores, sofreram vandalismo, e mais tarde cobertos com tinta de cor cinza. O apagamento das inscrições foi criticado e posteriormente organizou-se o projeto “Rio com Gentileza”, com o objetivo restaurar os murais das pilastras. Em maio de 2000, a restauração das inscrições foi concluída e o patrimônio urbano carioca foi preservado.
Aos que o chamavam de louco, ele respondia: - "Sou maluco para te amar e louco para te salvar".

domingo, abril 06, 2008

A nova performance do inclassificável

O desenvolvimento da performance como modalidade artística se deu durante a década de 1960 e é exatamente neste período que Ney de Souza Pereira estava iniciando suas intervenções na arte brasileira. Na década seguinte o teríamos como Ney Matogrosso e líder, em uma figura híbrida única, do grupo Secos e molhados – de vida (infelizmente) curtíssima, mas, sem dúvida, decisiva para o conceito performático que acompanharia Ney para sempre.
Ele sabe como ninguém causar controvérsia. Seja pela carga erótica com que alimenta suas apresentações, seja pela excelência nas escolhas de seu repertório musical, seja pela figura e voz inclassificáveis.
Importante sempre lembrar que muitos dos comportamentos tidos como modernos de alguns artistas de hoje rendem graças às portas escancaradas por ele.
Mesmo quando se dedica a (re)interpretar clássicos do cancionista nacional, como Cartola e Noel Rosa, não raro vestido de terno, ainda assim podemos identificar o desejo de criar uma persona, que possa melhor “traduzir” a mensagem que o artista quer transmitir.
Agora ele nos presenteia com o disco Inclassificáveis. São 16 músicas, majoritariamente inéditas, extraídas do roteiro do espetáculo de mesmo nome. No show ele mostra que, se “o tempo não pára” – canção que abre (quase aos berros) o disco –, os 66 anos de idade não afetaram nem sua voz nem a persona sexual carregadas de signos diversos.
A “entidade performática” criada por Ney Matogrosso, em seu novo trabalho, percebe, como homem contemporâneo, que é um homem, um bicho, uma mulher. Tudo ao mesmo tempo e agora. Ele é ainda febre que queima, o novo, o antigo, o que não tem tempo... como sugere a faixa “Mal Necessário” (Mauro Kwitko), regravação de faixa de seu disco Feitiço, de 1978.
O próprio nome do cd dá o tom e as pistas do que o ouvinte terá: letras que têm as perguntas ontológicas do ser como mote. Arnaldo Antunes, na música que dá nome ao disco, sugere “somos inclassificáveis”. Já o rock de Cazuza, Ezequiel Neves e Frejat pergunta “por que a gente é assim?” E a canção “Leve” (Iará Rennó e Alice Ruiz), aponta que “viver ou morrer / é o de menos / a vida inteira pode ser / qualquer momento / ser feliz ou não / questão de talento”.
As incertezas deste homem contemporâneo estão ainda presentes na regravação de “Novamente” (Fred Martins e Alexandre Lemos). “Quem sabe o que se dá em mim? / Quem sabe o que será de nós? / O tempo que antecipa o fim / Também desata os nós”, diz a letra.
“Coragem, Coração” (Cláudio Monjope e Carlos Rennó), talvez seja a letra mais objetiva dentre todas as outras, com sua temática sobre universo virtual e fakes. Cabe ressaltar ainda as brilhantes interpretações de “Ode aos Ratos” (Chico Buarque e Edu Lobo) e “Divino Maravilhoso” (Caetano Veloso e Gilberto Gil), que fecha o disco. Aliás, nada mais apropriado para um disco com esta temática do que o imperativo tropicalista “é preciso estar atento e forte”. Mas, sem dúvida, “Veja bem, meu bem” (Marcelo Camelo), que já havia sido gravada por Maria Rita, ganha uma interpretação ímpar e definitiva.
Ney Matogrosso manda, provoca, instiga e estimula o pensar sobre a (in)certeza de que somos inclassificáveis e de natureza mutante. Sem deixar de seguir o seu “Lema” (Carlos Rennó e Lokua Kanza) de “envelhecer com a mente sã, se renovando dia a dia, a cada manhã, tendo prazer” e “nem dar de não ‘se’ maravilhar, diante do mar e do céu da vida”, “perto de ser um Deus e certo de ser mortal”.
O cd não sai do disc play.