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terça-feira, setembro 25, 2007

Adoro odeio!

O primeiro texto que escrevi aqui foi “Duas doses de Caetano”. Trata da minha feliz possibilidade de poder assistir a duas apresentações, em um curto espaço de tempo, de um dos maiores artistas brasileiros contemporâneos. O show em questão era Cê, lançado agora, em cd e dvd, ao vivo.
Diferentemente do disco Prenda minha, que registra o show sobre o cd Livro, com ausência total de canções do disco de estúdio, Cê ao vivo, gravado na Fundição Progresso, aqui no Rio, traz, em 17 faixas, o registro de palco de grande parte das músicas do original.
Há sempre uma inquietação, por parte dos críticos, quando um cantor lança um disco ao vivo feito sobre o show de um disco em estúdio. Particularmente, penso que, se por um lado temos o monstro do comercialismo banalizante, temos também o calor da música registrada fora do estúdio, com a recepção direta do público.
Tais trabalhos podem proporcionar ainda as revisitações de repertório. No caso
de Cê ao vivo, Caetano pinçou “Nine out of tem” e “You don’t konw me”, do paradigmático disco Transa, de 1972, “Um Tom” (1997), dedicado agora ao maestro Jacques Morelenbaum, “O homem velho” (1984), “Como dois e dois” (1971) - finalmente gravada por ele, “Sampa” (1978) e “Desde que o samba é samba” (1992), ambas com arranjos atualíssimos, “London London” (1971) e “Fora da ordem” (1991).
Das releituras não autorais ele trouxe apenas a contagiante “Chão da praça” (1978), de Moraes Moreira e Fausto Nilo e a delicada “Ilusão à toa” (1959), de Johnny Alf. Do trabalho em estúdio, a certeira “Outro”, a introspectiva “Minhas lágrimas”, a sincera “Homem”, a híbrida e subjetiv
a “Odeio” – adoro odeio, a melancólica “Não me arrependo” e a pesada “Rocks”.
Destaco a canção “Amor mais que discreto”, escrita na primeira pessoa, única inédita e que dialoga intertextualmente com “Ilusão à toa”. Segundo Caetano, em entrevista a Rolling Stone, a canção é sobre “dois caras curtindo o sexo deles”. Mais que isso, é sobre um homem velho e o amor, quase platônico, por um jovem. Sobre isso o cantor disse que “aquele modelo grego do homem com um adolescente é um arquétipo na cabeça da gente”, e disparou: “sou velho, então já posso pensar nessa perspectiva”.
Os versos “você é bonito o bastante / complexo o bastante / bom o bastante / pra tornar-se ao menos por um instante / o amante do amante / que antes de te conhecer / eu não cheguei a ser” dão a dimensão objetiva e melancólica da letra. É a voz de alguém que muda completamente sua expectativa de vida diante do novo, do amor.

No cd ele mostra que continua fiel à tradição do rock, mas trocando os dilemas mais simples de adolescente pelos mais complexos, vividos por um sexagenário exalando uma dura sexualidade masculina. Mesmo quando trata o tema do amor homoerótico. “A mim esse tema sempre interessou, é um tema meu. Não entro em ambiente nenhum sem meus temas principais. Não iria deixar isso de fora”, concluiu o assunto, sem levantar bandeira, como sempre.
Caetano já deu voz a diversos tipos. Dentre eles, a voz do indivíduo sexualmente ambíguo, ou em dúvida quanto a sua sexualidade, está representada na letra da canção “Eu sou neguinha?”. Há ainda “Ele me deu um beijo na boca”, “Nosso estranho amor”, “Gatas extraordinárias”, “Escândalo”, “O namorado”, entre outras. A presença do tema do homoerotismo, das mais diferentes formas, sempre esteve presente na obra de Caetano.

Capa da Rolling Stone de agosto, aquela em que se supôs, devido à sempre competente especulação midiática, ele apareceria fotografado nu, Caetano está sempre em foco com suas afirmações e questionamentos, por mais que discordemos, repletos da consciência de quem observa de perto o Brasil.
O som de Cê ao vivo, que resulta das amarras das guitarras de Pedro Sá, da bateria de Marcelo Callado e do baixo e piano de Ricardo Dias Gomes, é o registro exato de um som viscera
l, “feliz e mau como um pau duro”.
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RODAPÉ: Com o objetivo de divulgar o importante movimento cultural que tem lugar na Zona da Mata de Pernambuco, aconteceu, no dia 20 de setembro último, o Rio Pernambuco.com com apresentações de Mestre Zé Duda e o Terno do Maracatu Estrela de Ouro de Aliança, dividindo o palco do Teatro Nelson Rodrigues com Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Os dois, além de interpretarem músicas próprias, algumas do cd Eu não peço desculpa, que Mautner divide com Caetano, se uniram no número final ao grupo de maracatu de Mestre Zé Duda e fizeram “Maracatu atômico” (1973). Esta se tornou a canção-manifesto do movimento Manguebeat nos anos 90. O resultado foi uma apresentação indescritível, de beleza e riqueza artística.

terça-feira, setembro 18, 2007

A “Capricho” gay?

Já está nas bancas desde a última sexta-feira (14/09) a revista Junior. Dirigida pelo competente André Fischer, também diretor do MixBrasil, maior site GLS do país.
A expectativa era grande. Depois da orfandade deixada pela Sui Generis, que até hoje é a referência para este tipo de publicação, seria de esperar que a nova revista oferecesse novos olhares sobre o universo gay, se é que existe mesmo um universo paralelo. Mas a primeira impressão, no passar das folhas – rápido e ainda na rua - foi a de folhear uma Capricho, agora gay. Até truque da pele perfeita tinha. Porém, um olhar mais cuidadoso revela que Junior é mais que isso.
A revista não decepciona, ela cumpre seu objetivo. Está cheia de gente bonita, divertida e jovem. Só não se percebe nenhuma inovação no discurso da corpolatria, aliás matéria de um bom dossiê na revista.
Como diz o editorial, assinado por Fischer, a revista é “assumida sem ser militante e sensual sem ser erótica”. No entanto, a afirmação de que quem faz a revista conhece “bem de perto as especificidades da ‘comunidade’ gay no Brasil” é, no mínimo, equivocada. Gera incômodo (de um modo negativo) esta visão reducionista da questão.
O nome da revista já sugere o que será encontrado dentro dela, mas é questionável que as “especificidades” gays, no Brasil, se limitem à vida noturna, música,
corpo e afins.
As fotos têm um trabalho muito cuidadoso e correto, sem falsos pudores. Destaque para a bela foto do bailarino Marco Silva e as 12 páginas com o modelo da capa, Lucas Pitioni.
As matérias em geral são curtas, sem aprofundar as questões, porém não é certamente a proposta ser uma versão gay de Piauí, Bravo ou Cult. Ainda assim merecem atenção o texto de Hermano Silva “Boys wanna dance” - depoimentos sobre a descoberta da paixão pela dança, a relação com os pais, sonhos e inspirações de alguns bailarinos -, o dossiê “(H)alter-ego”, e o texto de Tino Monetti sobre o trabalho do polêmico Bruce LaBruce.
Comentários no orkut previam que
Junior seria uma fonte de informação para quem busca alternativa à cultura de massa e uma antecipadora de tendências. Mas cabe perguntar: mostrar uma repetição de corpos com perfil idêntico, apresentar produtos da indústria cultural, prontos para serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distração, não é cair na massificação débil e dependente?
É interessante, como exemplo disso, ler a matéria de depoimentos de quatro homens, de 20/30/40/50 anos. O de 25 anos revela que não gosta de malhar, "mas me disciplino”; o de 32 conclui que “é nítida a mudança no meu rosto depois que comecei a trabalhar menos, sair mais, me divertir mais”; o de 42 diz malhar “cinco vezes por semana," ... "ajuda a relaxar, além de ser um ótimo ambiente para socializar”; e o de 56 afirma “que o corpo já não funciona da mesma maneira. Mas isso não quer dizer que não funcione bem”. Perceber essa linearidade e unificação de pensamento em gerações distintas é assustador.
Se a proposta de agora é atingir, com linguagem fluida, o jovem-gay-moderno,
Junior parece cumprir seu papel. Porém, falta e sobra muita coisa. A cultura, por exemplo, como em muitas outras revistas e jornais, é erroneamente reduzida às matérias de comportamento e entretenimento.
Salvaguardadas as aspas e comentários críticos, que aqui só querem ser construtivos, há que se parabenizar quem faz a revista, haja vista as dificuldades envolvidas. Vale a pena conferir este baby que nasce com pretensões de gente grande.
Que venha o segundo número para que se possa acompanhar seu crescimento.

terça-feira, setembro 11, 2007

Entre o rural e o experimental

Compositor de “Parque industrial”, quinta faixa do disco-manifesto Tropicália (1968), Tom Zé sempre fez da fusão entre consciência política e experimentação estética, aliada ao deboche incorreto, característica de suas composições. A letra citada, por exemplo, sarcasticamente forja a comemoração do avanço industrial no Brasil.
Naquele mesmo 68, estréia disco solo e, talvez por não se render aos apelos mercadológicos, começa a se isolar, afastando-se dos outros tropicalistas. Em 1973 lança Todos os olhos, em que o olho fotografado na irreverente capa, afrontando a censura, é uma bola de gude colocada na cavidade de um ânus. Após este período, amarga o ostracismo. Sua obra passa a ser tida como difícil e aberta apenas aos iniciados, passando a circular mais nos ambientes acadêmicos e lugares "alternativos".
Só nos anos 90, ele teve seu trabalho (re)descoberto por David Byrne, que comprou o cd Estudando o samba, seu melhor trabalho, numa loja do Rio. Tom Zé, sempre de fora dos domínios centrais, vive certa popularidade. É o período da Europa e dos Estados Unidos conhecerem ele. Porém, ainda assim, não abre mão do protesto social.
A verdade é que Tom Zé consegue sobreviver ao desgaste do termo “experimental” de forma irônica e sábia. Ele tira proveito mesmo dos erros embarcando, e levando junto seus ouvintes, numa viagem de pura abertura de fronteiras, onde a especulação parece ser o objetivo.
Sempre perturbando fãs e críticos, em 2000 ele lança Jogos de Armar, disco que recria “Asa Branca” e “Pisa na fulô” e que é a radicalização de seus experimentos com sons e instrumentos sonoros. O disco foi censurado nas rádios por causa de versos como, “Ah, puta que pariu / Bate estaca, bate rock”. Contradição de um país que em rap, funk e afins estrangeiros ou nossos, ouve-se ''fuck your mother, fuck your father, fuck your mind'', analisou Tom Zé, na época.
Agora é a vez de Danç-Êh-Sá - Dança dos Herdeiros do Sacrifício, disco aparentemente distante do seu processo criativo, pois as sete faixas não contam com a especialidade do compositor: letra. Há um instrumental vigoroso, acompanhado de vocalizações que brincam com sons. A referência no título ao sacrifício das nações negras para a formação das américas está bastante tematizada nos resultados sonoros do disco.
Tom Zé revelou que o cd foi concebido depois de saber o resultado de uma pesquisa da MTV, na qual se aponta a tendência para o hedonismo, o consumismo e a irresponsabilidade social dos jovens contemporâneos. Aliado a isso, a afirmação de Chico Buarque de que a canção está morta. Há, portanto, a busca de comunicação com esses jovens, que apontaram um certo desprezo pelas letras e a preferência pela música eletrônica.
O show homônimo ao disco, apresentado este fim de semana aqui no Rio, pelo DJ TãoZé - mais uma graça à música eletrônica - é cansativo para quem está acostumado com o Tom Zé letrista, mas agrada por mostrar a irreverência de sua vitalidade e capacidade de criação e performance. Aliás é esta performance que proporciona a aproximação com o público. O trânsito livre entre erudito e popular, resultado de sua formação na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, e entre os mitos gregos e as chagas sociais atuais são a marca do show desse artista com inacreditáveis 70 anos de vida.

O carinho pelo Nordeste, rural e artesanal, também está presente no show, especialmente no olhar agudo da letra “O pib da pib” – "A prostituição infantil barata / É a criança coitadinha do Nordeste / Colaborando com o Produto Interno Bruto / E esse produto enterra bruto" – canção do cd Jogos de Armar. Aliás é quando interpreta as canções deste disco que surge uma clara resposta do público, até então apenas "protocolarmente participativo".
No show, Tom Zé é acompanhado por músicos afinadíssimos com seu atual projeto pessoal. Danç-Êh-Sá, combinação de experimento e artesanato sonoros, não é o melhor trabalho de Tom Zé, nem tem a pretensão de sê-lo, mas evidencia a continuidade no seu processo de aprofundamento e originalidade de nossa música.
Por fim, mesmo sem letras, Danç-Êh-Sá fala demais.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Encontro com o pop João Cabral

A fim de promover a antologia O artista inconfessável, de João Cabral de Melo Neto, lançada há poucos dias pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, o jornal O Globo reuniu ontem, em seu auditório, Ferreira Gullar, Bráulio Tavares e Eucanaã Ferraz, com mediação de José Castello, em um debate sobre a vida e a obra do poeta.
Entre outras coisas questionou-se a idéia do artista que se “confessa” em sua obra, algo que Cabral sempre lutou veementemente contra. Para ele, poesia era o trabalho do exercício com a palavra. E a palavra era tida como pedra ou faca sem cabo. Para o semioticista Roman Jakobson, “a linguagem deve ser estudada em toda a variedade de suas funções” e parece ter sido este o propósito de Cabral.
A mim incomoda bastante esta análise do texto pelo viés psicanalítico, proposta pela nova antologia do poeta. Buscar soluções para as questões textuais na vida dele é deixar de lado a especificidade do objeto artístico e cair na má crítica, ou na crítica limitada. Fazer isso, por vezes, corro
o risco de dizer, é constatar a incompetência crítica diante da obra.
Contemporaneamente, vemos um número cada vez maior de leituras com este objetivo de encontrar o artista dentro da obra. Penso que seja uma busca de ressuscitar o autor, e numa leitura mais ampla o indivíduo, perdido em meio à fragmentação moderna e “pós-moderna”, e que teve sua morte constatada principalmente pelos filósofos Foucault e Barthes.
Mas, voltando à poesia de João Cabral, com sua gramática única, ela não se deixa fruir livremente. Não há como entrar no universo cabralino e sair da mesma forma, pois nele reside aquilo que o crítico inglês Ezra Pound já definiu como Literatura, ou seja, trabalho com a linguagem carregada de sentido a mais não poder. E isso não é discurso do meio acadêmico, como vem afirmando Inez Cabral, filha do poeta. A dificuldade na interpretação da poesia de Cabral é constatada por qualquer um que se detenha sobre ela.

João Cabral torna possível, pela arquitetura de seus poemas, uma ruptura radical dos versos, que no Brasil viviam à sombra do simbolismo e da retórica pomposa. Com sua concisão, desprezo ao enfeito e ao sentimentalismo barato e com sua limpeza de estilo, ele cria leitores de poesia ou, pelo menos, desperta nos leitores já existentes novas consciências do fazer literário.
Avesso ao lírico e à música, pois, segundo ele, a música “desarruma” os sentidos e ele temia esta “falta de controle”, Cabral coloca seu leitor na crise do não-reconhecimento com a mensagem. Ele entorta a linguagem para não deixar que ela frua, para exigir mais do leitor. Esta tentativa atual, de tentar facilitar a leitura de sua obra através do viés autobiográfico, pode aniquilar todo o "Projeto João Cabral" de fazer poesia.
Recordo o texto “Direito à literatura”, do mestre de todos que trabalham com as Letras no Brasil, Antônio Cândido, com a sugestão, tomo aqui a liberdade de interpretá-la, de que todo artista, como diz a canção, “tem de ir aonde o povo está”, porém, esse “baixar o nível”, no intuito de ficar mais fácil e atingir um número maior de público, subestima e provoca a estagnação intelectual desse mesmo público. Cabral, ao contrário, convida o público para dentro do seu universo, elevando o nível e instigando o leitor.
Fica a pergunta de resposta fácil: A poesia de João Cabral emociona? Sim. Mesmo ao revés dele, há quem vá às lágrimas. Mas emociona pela arquitetura, pela transpiração sobre a palavra cuidadosamente pensada e calculada, pela beleza de seus jogos semânticos.

Em resumo: João Cabral não é um poeta fácil, pois ele é daqueles artistas que criam leitores, leitores conscientes de que a Literatura acontece quando o poeta consegue usar a linguagem em benefício da própria linguagem, transformando e colocando ela em movimento.
Se a proposta de agora é promover o descobrimento de sua obra, pela facilidade e comodidade da leitura puramente autobiográfica, se, como afirmou sua filha, a “guerra atual” é mostrar que João Cabral de Melo Neto é pop, no sentido de consumo fácil, desejo sorte aos atuais e futuros críticos de arte.